quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Ao amado, o antigo



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Nesta manhã de claro sol reconheço a existência de homens mutilados caídos uns sobre os outros em nosso chão. Sei que outros corpos haverão de tombar ainda hoje e amanhã e depois. Ontem; ontem era permitido fechar um instante os olhos, esquecer o mal e o que está além. Esquecer o desconhecido em que habitam nossos fantasmas. Além do mal, porém, há a lâmina que passeia meu corpo. Sinto-a nítida beijando a profundidade de minha pele, buscando o limite de meus ossos. Sinto o contato vibrante com o metal; a incisão imperativa redizendo sempre "abra os olhos". Tenho me esforçado por não esquecer, para manter-me em vigília - sabemos quão difícil tem sido: descobrir o que é afago, entender o que é distância; amar a nudez desses mortos e chorar por eles.

Nesta manhã, clara do sol, ouço seu clamor e respondo: sim. Lutemos juntos, pois será impossível descansar enquanto houver guerra. Juntos, não seremos mais fortes e não teremos o mundo somente nosso. Seremos ainda apenas nós entre todos, sob os olhares cegos de toda a gente. Seremos apenas você e eu, ainda que desejemos ser todos, ainda que partilhemos com os famintos nosso pouco vinho e nosso nenhum pão, nossa muita luz que nada lhes ilumina. Mas há os campos e há a guerra. Lutemos. Juntos. Uniremos nossas mãos.

Faz sol nesta clara manhã. Entrelacemos as mãos e reinventemos as palavras que temos dito todos os dias, ainda que não haja emissão de sons e letras. Sabemos que estão próximas as palavras; soluçando sobre nossos ombros, sempre estiveram. Neste agora estão contidos o que foi e o que será. Assisto proclamadas águas banhando os cortes e chagas, restituindo nossas cores mais belas.

Permanece em nossa casa a visita da manhã. Não esqueçamos, amado, que unir as mãos e entrelaçá-las é também unir os corpos - pensamentos e sentires - de modo que nenhuma linha, tênue que seja, os divise. Em vindouros combates, conseguiremos ser os mesmos sentimento, porta e palavra ao chegar da noitinha?
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7 comentários:

O Menino Trovador disse...

Fiquei incrívelmente sem palavras, esse texto é lindo!

marcela primo disse...

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Tal como falávamos na 2ª feira, sempre voltamos ao antigo.

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H. Henrique disse...

"Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Toda fome e inocência dessa gente"

marcela primo disse...

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Um beijo, Mercedes...

;-)

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Eu mesmo disse...

Talvez não seja humano suficiente...

marcela primo disse...

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Refere-se a mim, a si ou ao texto?

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Eu mesmo disse...

No começo, fui eu quem te lançou ao abismo.

Mas agora por que repete o gesto e traz do sono esses sentimentos?

Onde estão as espadas a ferirem meu corpo? Alerta já não consigo mais dormir e revivo o passado. Estava errado?

***
(...)
Os dias passam.
Talvez os dias passem, porque as palavras prontas para os dias de hoje ainda estão para serem pronunciadas nos dias ulteriores.
Talvez os dias passem, e nós, minha querida, meus queridos, não nos encontremos nesses dias, posto que as palavras destas manhãs e tardes e noites ainda estejam para serem inventadas. Pois,
'A vida, a vida só é possível reinventada'.

Sim.
Sim, eu entendo que para esta sexta não existam versos. Eles já estão escritos. Estão em livros de 1930, de 1940, de séculos atrás; estão reescritos em folhas de cadernos, em arquivos fechados, na memória, que se fecha também sem alimentos.
Sei que esta sexta já estava escrita em promessas e em apelos das mãos. No amor delicado dos planos e dos beijos. Nos telefonemas, nos recados, mensagens em alto mar.
Sei que havia bordado esta sexta; e que havia desfeito o novelo e se postado de Penélope, nas varandas.
Esta sexta, no entanto, foi como a promessa sem tempo de realizar-se. Uma sexta do passado, feita de outros retalhos e mais suspiros.

Também queria os versos desta sexta e também os tenho tecido falando da urgência e dos sentidos. Todavia, é preciso não esquecer que, entre os versos e o tempo, há a guerra.

Peço. Lutemos juntos. Entrelacemos as mãos.