sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Saldo

"Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” - não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rígido, desprovido de qualquer dúvida: 'estamos indo sempre para casa'".
Lavoura arcaíca - Raduan Nassar


O tempo senhor do destino se encarrega de readequar os propósitos da vida. Era assim que eu divagava e me distanciava de tudo aquilo que um dia me compôs, numa quase noite de réveillon eu percebia como o dia, que antecedia o nascimento de um ano bebê, morria.

O ar se condensava e o tempo se estendia em fatias espessas me obrigando a olhar para minha vida, de repente um telefonema. Eram as contas sentimentais que eu protelava tanto para acertar com aquele que um dia partiu sem saber o quanto me doía agora e sempre a falta que seu lugar à mesa de homem da casa fazia.

Eu tentava não embargar a voz e me mostrar o mais forte que eu conseguia, não podia me dar ao luxo de sentimentalismos toscos em plena véspera fúnebre de morte e nascimento, os compassos do relógio espalhavam minhas lágrimas na cadência desordenada de um tic tac sem fim, era uma bomba prestes a explodir, era uma agonia de morte e um sopro de vida.

No computador surgiam as inúmeras ramificações do passado e o presente se transformava em incerteza pelas coisas que fiz, pelas coisas que deixei de fazer e pelas coisas que eu não poderia mais me arrepender de ter feito.

O tempo senhor do destino se encarrega de readequar os propósitos da vida - nessa falta de raiz, nesse chão arenoso e movediço eu procuro calcar a estabilidade que protela em chegar, minhas dividas sentimentais me assolam - é hora de morrer ano sangrento! - é hora de quebrar a linearidade do tempo num pequeno átimo de metafísica que transforma o velho em novo, o número 23:59 se torna 00:00, um choro derradeiro, um passo para o espaço e a obrigatoriedade de sonhar. É tudo novo de novo e de novo num ciclo sem fim, deve ser a tal 'vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro'.

Eu tenho medo do relógio não virar dessa vez, do agonizante vegetar, da fada da prosperidade esquecer o número da casa onde eu estarei esperando sua visita, do feto nascer morto.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

sem poema

desde que amo e tenho sido amada,
já não penso
em sílabas poéticas;
basta-me a fonética
dos teus sussurros e dos meus gemidos
assim
confundidos
numa só respiração:
eis a minha inspiração;
sem poemas e sem prantos
apenas todos os dias e o encanto
de ser tua e seres meu.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Atrito



atrito: sm. 1. Fricção entre dois corpos. 2. Deisnteligência, desavença.

"Flor, minha flor
flor vem cá."
Grupo Galpão - Romeu e Julieta
Estávamos parados olhando para aquele horizonte negro que se abria no terraço da casa, a cidade inteira brilhava no espaço corrosivo do silêncio.
- Você quer uma cerveja?
- Quero.
- Você está bem?
- Estou.
- Vamos conversar?
- Aham.
- Fala alguma coisa.
- Ah, sim sobre o que você quer falar?
E era nessa sucessão de sins, e de agradabílissimas respostas que vertíamos o silêncio em repetitivos rodeios de cortesias. Eu não queria a cerveja e ele não queria falar, o céu queria ser noite e a noite trovejava incessantemente raios de silêncios que afastavam cada vez mais aquele pequeno espaço entre as duas cadeiras colocadas diante do infinito.
Eu pensava no mundo que se descortinava em contradições dentro dos meus pensamentos e todos os nãos que precisavam ser ditos fugiam da materialidade do som da minha voz, me perdia na abstração de sensações e nas muitas implicitudes que rondavam a minha falta de verbo - eu queria dizer que eu não consigo dizer não, eu não consigo brigar, eu não consigo lidar com as situações de desespero e de conflito, por isso eu aceito. Eu sou esse apanhado de nãos que não se materializam, eu sou o conflito interno que não se propaga. - Diante dessa lua imensa nos acariciávamos e sorríamos para o nada, engatilhavamos muitos assuntos para abafar o ruído do silêncio e fazíamos planos de cruzeiros pelas águas do Pacífico. Era perfeito sanar o tédio com miraculosos planos de vida que pressupunham um futuro, era no depois que transbordávamos a amplitude das dissonâncias do hoje, era sempre numa espera que alimentávamos a felicidade e que esquecíamos as nossas competições - eu queria dizer que eu não vou falar algo que você não queira escutar, justamente porque você não quer escutar eu não falo, tento amenizar meus pareceres e tento abrir a escuta para o que eu não ouço de você, mas eu não ouço nem mesmo os seus defeitos ou o que te torna humano, você não transparece, eu não transpareço, nós ficamos então na linha da perfeição, daí falta atravessamento, construção em conjunto, falta dueto no videokê e na vida, falta a falta, a saudade, e as fraquezas da carne que a saudade proporciona mesmo que essas fraquezas aconteçam no mundo subterrâneo da sua mente - eu gostava de abraçar você nos meus momentos de intempéries, eu sorria para você na inexatidão do meu sim, a gente transava na contradição das nossas idealizações.
- Vou pegar outra cerveja.
- ...
- Você quer?
É claro que eu não quero cerveja, eu nunca gostei de cerveja, eu sempre te enganei.
- Você quer?
- Traga a mais gelada.
E num sorriso voltamos ao ato amoroso de observar as malditas estrelas etílicas que reluziam na lata de cerveja.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Conto sem fadas

O herói desleal e uma princesa sem virtudes.
Uma ideia falsa e a má atitude.
Juntos no descaminho
- mais e mais distantes -
sozinhos.