sábado, 12 de julho de 2008

Nada

Nunca gostei que me olhassem fundo nos olhos. Meus olhos significam mais do que as milenares palavras de um dicionário.

Certa vez, numa situação de amor, lançaram-me um olhar febril de paixão, meus olhos convulsionaram-se de uma fria languidez e aqueles olhinhos souberam enfim o que tanto havia no meu coração. Aquela face empalideceu, o sorriso se desfez ao compreender o mistério que há no espaço entre o ver e o olhar.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Visto a máscara...


Visto a máscara e corro todos os bailes, mas eles não sabem. Eles não sabem que suas vozes e suor permanecem nas estampas que lhes envolviam os corpos, mesmo neste instante em que os namorados se fizeram conhecer e os risos recolheram-se no sono da embriaguez.

Então sou eu a buscar os retalhos esquecidos nos cantos dos salões. Tingidos de vinho ou sangue, são eles que compõem meu costume.

Parece não ter passado muito tempo desde que recusei meus trajes mais antigos. Tentei vestir o muito leve que são a cor do vento e o som de luas espirais. Permiti que desconhecidas vozes deslizassem sobre meus sentidos enquanto eu permanecia quieta, silenciosa. Não o silêncio de quem cala, mas o silêncio de quem não sabe e precisa aprender.

Aprender que as mãos — as minhas próprias e quaisquer outras — guardam algum segredo, algum encantamento: ainda que cerradas em punho, ainda que voltadas para o céu em completo abandono de prece.

Aprender que os pés sempre tornam ao antigo movimento — o mesmo andar desordenado de quando criança — apesar de o ritmo mostrar que, para além do mal, a vida e o desejo também são motrizes de mim.

Silêncio de quem acreditou nascer, em algum corpo de amante, o beijo que fizesse não mais pensar em infinitos e eternos sobre os quais, de fato, nada sei dizer.

Não estive sóbria naquelas manhãs; mas a fuga aos sentidos era necessária e esperada enquanto houvesse vestígios de tantas festas.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Amor Perfeito II


"Porém, como uma promessa de vida nova, te digo:
Regarei, cuidarei e amarei..."



Aprendi a máxima irrefutável de que não basta recolher as flores caídas e encerrá-las em livros. O muito cuidado não lhes restituiria vida ou beleza. Ensinaste-me que devemos reinventá-las junto ao corpo, como são inventados os amores. Conduzir os lábios ao cálice; estreitar o dorso aos espinhos; despentear suas pétalas para que, ausente, persista o perfume entre os dedos.

Ensinaste a mim o que aprendeste das orquídeas e dos narcisos. Não sabias, porém, que eu já lançara meu corpo a toda sorte de bem-e-mal-me-queres ou que, desde o primeiro instante, já me precipitara e me perdera no espelho de teus olhos. Não, não me condenes por esmagar flores em livros nem reclames a memória de eflúvios em tuas mãos viajantes. Contudo, se puderes chorar esta flor morta — parte do que em mim há do mais vivo amor apieda-te também das violetas.

Pequeninas, confundidas e esquecidas entre o solo fértil e as plantas dos teus pés.

domingo, 6 de julho de 2008

De quando beijei a morte...

Francis Picabia, Femme aux oiseaux



Eram cinco ou seis grãos de areia dispostos de modo a imitar a forma de uma casa. Casa branca, murada baixa, cortinas azuis a cobrir a vista de seu interior. Dois pássaros: amarelo; preto. Nunca alçaram vôo, senão no interior da casa que desde sempre habitaram. O mesmo espaço ruinoso persistia em sua brancura de paredes, tal como se fizera existir no instante de sua construção. Então num sopro - muito leve sopro de menina - cada um dos grãos ventou o som de sua própria voz, lançando em espanto as aves dormentes.

marcela p. em 13/11/2004

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Conversinha Real


- E então não é lindo?
- Lindo! Mas tem de tudo mesmo?
- De tudo, só não tem favela. Proporcionamos saneamento básico e um programa de educação sexual para reduzir a natalidade.
- E fome, têm?
- Distribuímos cestas básicas, vale refeição, décimo terceiro, quarto e quinto salários para os trabalhadores. Aqui a fome passa longe!
- Casas?
- Próprias.
- Economia?
- Crescente.
- Desemprego?
- Nulo.
- Homicídios, seqüestros e roubos?
- Quase zero. Sequestro, o que é isso mesmo? Ah! Deixa de bobeira Manuel, não precisamos de cadeia, aqui o cidadão é honesto.
- E aquelas mulheres ali no porto?
- São Helenas, Marias e Joanas esperando por marinheiros, poetas e economistas.
- E os tísicos? Elas também esperam os tísicos?
- Já disse que tu terás a mulher que quiseres na cama que escolherás.
- Mas eu ainda não sou feliz.
(Tosse, tosse, tosse.)
- Respire Fundo Manuel!
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- É disso que precisas, ar fresco, prostitutas bonitas e banhos de mar. Isso não é felicidade?
- Majestade, um quase defunto como eu destoa nesse paraíso.
- Então não vais ficar Manuel?
- Sinceramente? Vou-me embora. Pasárgada é um soneto de amor romântico encerrado.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Deitada no topo...

Gustav Klimt - The Sunflower


*para ler ouvindo The Scientist, Coldplay;
continuar ouvindo depois de ler e,
se possível, voltar ao começo...



Deitada no topo do meu girassol, esqueço melhor o mundo. Mundo inventado em pedacinhos de papel; desenhado nas paredes de meu quarto com um movimento de olhos. Às vezes, o corpo cansa desses jogos - de vida ou de invenção - e precisa estar quieto. Esqueço tudo; esqueço de mim na superfície desta ou daquela flor. É o sol, somente, a vestir quentinho a pele nua, o coração exposto. Nenhum êxtase ou comoção; apenas a calma, a serenidade.