sábado, 31 de outubro de 2009

Um ponto é...



.


Um ponto é uma convenção como tantas existentes. Sinal que se quer preciso - um sinal para quem o lança e para quem o recebe. Nisso e não em outro fato reside seu significado, suas significações.

Eu queria precisar uma ruptura. Eu queria precisar um começo
na outra linha, parágrafo (dois dedinhos), letra maiúscula. E tenho feito isso, deixando entre as linhas espaços em branco.
Mas são cavalos-marinhos, peixinhos, que pontuam minha vida - há muito desde que disse isso certa vez. Equilibro meus passos entre muitas dúvidas e algumas exclamações, reticências. Convenções?!...

Gosto disso.




E gosto de tocar mãos que me tragam estrelas, flores, pedrinhas.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Iniciantes

Duas coisas estão certas: 1) as pessoas já não se importam mais com o que acontece com os outros, e 2) nada mais faz alguma diferença de verdade. Vejam só o que aconteceu. E mesmo assim, nada vai mudar entre mim e o Stuart. Mudar de verdade, quero dizer. Vamos ficar mais velhos, nós dois, já dá para ver na cara da gente, no espelho do banheiro, por exemplo, nas manhãs em que usamos o banheiro ao mesmo tempo. E certas coisas à nossa volta são mudar, ficar mais fáceis ou mais difíceis, uma coisa aqui, outra ali, mas nada será diferente de verdade. Acredito nisso. Tomamos nossas decisões, nossas vidas foram postas em movimento e vão seguir adiante, até a hora em que vão parar. Mas, se isso for mesmo verdade, e daí? Quer dizer, a gente acredita nisso, e mantém isso escondido, até que um dia acontece uma coisa que devia mudar tudo, só que aí a gente vê que, no final das contas, nada vai mudar. E daí? Enquanto isso, as pessoas em volta da gente continuam a falar e a agir como se a gente fosse a mesma pessoa do dia anterior, ou da noite anterior, ou de cinco minutos antes, mas na verdade a gente está passando por uma crise, o coração sente que sofreu um estrago
(trecho extraído do conto Tanta água tão perto de casa - Raymond Carver)
*
Why do you come here when you know it makes things hard for me?(...)I'm so sorry!
*
Cena criada a quatro mãos com Anna Carolina Consenza no domingo dia 27/09, para nossa aula de montagem. O texto foi criado a partir do trecho extraído acima e de experiências de vida. Peço licença a minha querida Marcela, mas é que esse texto diz muito para mim.
*
(para ler ouvindo Suedehead - Morrissey. A cena só terá sentido se for lida ao som dessa música) http://www.youtube.com/watch?v=0AvuweztG4Q
(ritmo intenso, ofegante de respiração acelerada)
Ela - Desculpa.
Ele - Porque você fez isso?
Ela – Medo! Medo de acordar de manhã e olhar pro lado e ver que você está lá!
Ele – Mas era pra ser assim não era?
Ela – Não sei!
Ele – Não sabe? Quinhentas pessoas dentro daquela igreja sabiam e você não sabe?
Ela – Esse casamento não era pra mim!
Ele - Então pra quem era?
(silêncio)
Ele – Quem é você?
Ela- A esposa.
Ele - Egoísta
Ela – você tá aqui pra quê? Pra pedir pelo amor de Deus pra eu me casar com você, pra dizer que me ama e que toda sua vida se resume a uma mulher que você nem por um segundo conseguiu perceber quem era?
Ele – Você nunca se entregou e eu sempre me doei (...) pra você me deixar plantado no altar. Caramba, eu tô aqui, você não tá se vendo? Até ontem você dizia que me amava e que a gente ia ser um só pra sempre.
Ela – A gente ia...
Ele - Acabou?

terça-feira, 22 de setembro de 2009

...sempre, sempre, sempre...

"Apesar disso - escutem bem - todos os homens
Matam a coisa amada;
Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros
Com face amargurada;
Os covardes o fazem com um beijo,
Os bravos, com a espada!"

Balada da Prisão de Reading,
Oscar Wilde.


Amado,
creia-me:
seus beijos são palavras caídas de algum céu.

Se minhas linhas parecem demasiado doces ao seu paladar, lembre-se: palavras caem, como hão de cair todos os anjos.

Hoje, chama-me “estranha” e lança aos ventos seu repúdio contra mim e minha pouca compreensão de si, dos outros, da vida. Entristeço-me por saber que há razão em seus dizeres, e mais por ter fingido esquecer.

Outrora também fui desconhecida de seus olhos e desde já eu o amava. Naqueles dias, nos salões e nas ruas, entre tantas vozes que se elevaram, foi a sua, em timbre e palavra, que me trouxe do sono que nunca, em verdade, abandonei.

Meus olhos não eram, e não serão, como os seus. Seus olhos, castanhos, estavam tomados pela cólera nascente apenas nos que sabem e revoltam-se contra inimigos reais; enquanto os meus, estes tateiam o espaço ordinário dos descrentes, dos apenas desejantes. Meu rosto, sabíamos desde o princípio, era face do deserto.

  
Minotauro acariciando a una mujer dormida, de Picasso (1933)Como o leite e bolachas de mel, porém, sobrevieram suas palavras. Tomei do alimento em seus lábios, bebi do calor em sua boca e, confesso, sonhei você para mim.

Nas ruas, de tantos rostos que sorriram, de muitos que choraram, foi o seu — distante — que eu quis e amei. Rompia em meus desejos os alicerces de nossa casa, enquanto que nos seus passos eu antevia florescerem as paredes. Com temor, amaríamos cada uma das frestas.

...

Você nunca quis minha realidade, eu sei. Buscava apenas aquilo que de mim são sonho e fantasia. Mas busquei todo você em toda parte, ainda que não me fosse dado conhecer senão parte do que éramos, tantos são os fragmentos de que nos compusemos. Peço, porém, que, antes de acusar-me por deixá-lo ao relento em certos dias, lembre-se: nos campos onde havia fogo e tantos gritos — que nenhum outro cavaleiro ousaria descer as portas e romper as correntes — eu lá estive em demanda. Abriguei seu medo e sua culpa em meus braços e em meu seio estiveram adormecidos.

Eram nossas mãos que se tocavam; eram nossas mãos, a minha e a sua.

Recebi, e não esqueço, o impossível amor... Se no espaço de seu corpo não nasceram os cometas, seja talvez porque tudo quanto semeei foi a vida estática.

Sim, pois também nossos lábios estiveram unidos; é certo que não mais em palavras: silenciamo-nos nesses beijos. Meus olhos estiveram novamente cerrados; a avidez em meus cabelos pintou gris o horizonte. Brotaram as águas de tantas tormentas, assistimos pacientes ao esvaecer de nossa morada.

Volta, então aos labirintos, corredores tão íntimos seus...

Quanto a mim, repousarei sob seus umbrais. Tenho ainda alguns fios que poderiam ser lançados, não estivéssemos tão ferozes em nossa calma, não fôssemos tão incansavelmente nós.

...


Será capaz, você, de velar o meu sono? Velará meu sono, para que eu seja, ainda nos dias em que tentarei matá-lo? Nos dias em que jovens portando espadas invadirem seu esconderijo e ferirem seu corpo em meu nome, ainda assim, lembrará que há entre nós o amor? Saberá que nossos beijos foram ausência em saraivada, caindo de todo céu?

Marcela P.

22/09/2005

"Fumo subia de toda a terra, dos oceanos vaporosos. O fumo do seu louvor!
A terra era como um turíbulo oscilando e balouçando, uma bola de incenso, uma bola elipsoidal. O ritmo morreu de vez; o grito do seu coração estava quebrado.
Os seus lábios começavam a murmurar os primeiros versos, sempre, sempre;
e foram até os versos médios, desatinadamente, gaguejando
e errando: depois pararam.
O grito do seu coração estava quebrado."

Retrato do artista quando jovem,
James Joyce

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Por que me tentas?

polvo

envolveste-me em teus tentáculos
metendo-me em desatino

fizeste de mim o Pecado
e de si o perdido menino

 mas por que me tentas, ainda na partida,
e não tentas, comigo, o clandestino?

Foto de Vlad Gansivsky, encontrada no blog pequenos delitos.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Aniversário

O blog completou 2 anos sem festa nem vinho, mas com a certeza de que há um sentimento que subsiste às adversidades do tempo, espaço e massacrante rotina.
Te amo, Murillo. 

"De repente me bateu uma saudade da metafísica; daquilo que é caleidoscopicamente sublime. Quando transformo esse encontro de almas em ação cotidiana, me sinto menos só. Te amo."
Murillo Marques, 21/08/2009, por sms

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Ao amado, o antigo



§
Nesta manhã de claro sol reconheço a existência de homens mutilados caídos uns sobre os outros em nosso chão. Sei que outros corpos haverão de tombar ainda hoje e amanhã e depois. Ontem; ontem era permitido fechar um instante os olhos, esquecer o mal e o que está além. Esquecer o desconhecido em que habitam nossos fantasmas. Além do mal, porém, há a lâmina que passeia meu corpo. Sinto-a nítida beijando a profundidade de minha pele, buscando o limite de meus ossos. Sinto o contato vibrante com o metal; a incisão imperativa redizendo sempre "abra os olhos". Tenho me esforçado por não esquecer, para manter-me em vigília - sabemos quão difícil tem sido: descobrir o que é afago, entender o que é distância; amar a nudez desses mortos e chorar por eles.

Nesta manhã, clara do sol, ouço seu clamor e respondo: sim. Lutemos juntos, pois será impossível descansar enquanto houver guerra. Juntos, não seremos mais fortes e não teremos o mundo somente nosso. Seremos ainda apenas nós entre todos, sob os olhares cegos de toda a gente. Seremos apenas você e eu, ainda que desejemos ser todos, ainda que partilhemos com os famintos nosso pouco vinho e nosso nenhum pão, nossa muita luz que nada lhes ilumina. Mas há os campos e há a guerra. Lutemos. Juntos. Uniremos nossas mãos.

Faz sol nesta clara manhã. Entrelacemos as mãos e reinventemos as palavras que temos dito todos os dias, ainda que não haja emissão de sons e letras. Sabemos que estão próximas as palavras; soluçando sobre nossos ombros, sempre estiveram. Neste agora estão contidos o que foi e o que será. Assisto proclamadas águas banhando os cortes e chagas, restituindo nossas cores mais belas.

Permanece em nossa casa a visita da manhã. Não esqueçamos, amado, que unir as mãos e entrelaçá-las é também unir os corpos - pensamentos e sentires - de modo que nenhuma linha, tênue que seja, os divise. Em vindouros combates, conseguiremos ser os mesmos sentimento, porta e palavra ao chegar da noitinha?
§

sábado, 1 de agosto de 2009

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Rayuela


“Certo dia, deu-se conta de que seus amores eram impuros porque pressupunham essa esperança, enquanto o verdadeiro amante amava sem esperar o que quer que fosse fora do amor, aceitando cegamente que o dia se tornasse mais azul e a noite mais doce..."
Julio Cortazar

Caminhar
entre o céu e o inferno
já não é
um jogo de amarelinha
e
nossas palavras cruzadas
são como espadas
em combate.
Somos, então, adversários
nos mesmos pátios
onde fôramos
companheiros
de
travessuras.
Qual moira às avessas,
desfazem, nossos passos,
a urdidura.
Mas a pedra, a pedra na linha,
no meio do meu destino,
será a mesma
que carregarás
por todo o teu caminho.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A rua da província

desenho de Aldo Zanetti


Vamos tomar um chá de pernas com a velha senhora que vende seus minutos de prazer em tantos buracos, negociaremos um chá de glandeos, períneos, auréolas e pêlos. Ao fundo o som decadente de um blues irritante em sua sala de neons multicoloridos.

Esta velha senhora de néctar ousadamente delicado me deixa aos berros, coloca-me incerto de minha certezas planas, vamos beber o sumo candido em sua poltrona aveludada. Dona dos meus olhos, mostra-me o amor de suas virginias, abraça-me com seus paêtes e suas unhas encarnadas, deixa-me vulnerável com seu ópio, com seu sistema falho de ovulação.

Minha deusa, passei por muitas janelas em toda essas noites em que estive a vagar e a lutar contra dragões. No entanto, só agora que cheguei nessa província é que me deparo novamente em frente aquela única, de candeeiro baixo e paredes corroídas, em que eu não posso entrar.


sábado, 4 de julho de 2009

Carta ao dignissimo senhor D.


Digníssimo senhor D, venho por meio dessa carta informar ao senhor que o inverno chegou, as mocinhas trajam roupas mais quentes e os rapazes usam cachecóis, as árvores estão cada vez mais secas e peladas e as noites são um misto de marrom com um bordô meio enviezado para a tristeza.
Pelo visto o senhor tem trabalhado demais, e sua mãe, me diga dela, melhorou daquelas moléstias que o fez desaparecer tão repentinamente?
Por aqui as coisas andam frias, acho que logo mais a neve irá tampar a porta de entrada da casa. Sinto que é preciso que Agosto chegue logo e com ele os raios de sol primaveris, lembro-me bem do calor daqueles dias agostinos em que nós andávamos a contemplar os lírios e a dar risadas dos tolos obsecados que corroboravam com o cinzento ar matinal da cidade grande.
A Maricotinha está namorando firme, a Juju anda iludindo uns amores tolos. Terminei aquele livro e escrevi aquele texto, terminei o curso de datilografia e estou trabalhando numa repartição pública. Acho que me alistarei para o exército no verão, ouvi dizer que o Brasil está precisando de braços fortes para a luta armada.
Querido amigo, mande lembranças.Essa sua ausência que culmina nesse silêncio não lhe cai bem.

Do sempre seu companheiro de parque,

Mizu.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O Trem das Cores




Eu queria um texto cheio de imagens, desses que vão refletindo como espelho aquilo que a gente não mostra claramente ao falar de amor, de solidão e de esperança, deixando toda a intenção real de quem escreve sublimada.
Um texto universal que falasse todas as línguas e ressonasse o som da chuva, chiando pelas encostas do riacho e desembocando na parte mais densa do mar tombando gotas fluídas de verbos esvaidos em flancos inflamados que pudessem dizer da paz que é sentir-se bem.
Eu queria saber usar as cores vibrantes e rubras dos tangos argentinos, que as minhas palavras escorressem como o sangue de minhas mãos cortadas pela lamina prata da navalha dizendo assim das escatologias, das visceras, daquilo que está dentro e que se põe exposto a partir do momento que o verbo se torna hemorragia de sensações.
O meu texto deveria pretender falar de coisas inerentes ao ser humano, mas eu percebi que sobre isso eu não sei falar, eu não consigo estabelecer a ponte entre o tu e o eu, não há o que dizer. Eu não sou poeta.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Jogos




Yann Tiersen - Comptine d´un Autre été: L´Aprés Midi
Found at skreemr.com

Nesta roda, também fui brincante:
ladrilhei as ruas que não eram minhas
para amores que não serão meus.
Sem mais voltas, finda a ciranda,
vou embora, digo adeus.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O marasmo.

1.
Assim ao Poeta a Natureza fala!
Enquanto ele estremece ao escutá-la,
Transfigurado de emoção, sorrindo...
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Sorrindo a céus que vão se desvendando,
A mundos que vão se multiplicando,
A portas de ouro que vão se abrindo!
("Supremo Verbo" - Cruz e Souza)
2.
Marasmo: s.m. Magreza extrema, abatimento físico; atonia. / Fig. Estagnação, apatia, indiferença, descaso.
( Aurélio)
Eu tento escrever sobre esse nada, quero dizer desse vazio que não deixa a pena prosseguir. O marasmo.
Eu já tive a necessidade de ter algo para dizer, de saber como sentir, de me motivar para acender aquele cigarro. Hoje não.
Eu vivo, eu trabalho, eu não estudo mais.
É como viver da impressão, da imagem. Da imagem vazia.
Um significante vazio de significados, é incrível como até essas palavras não têm mais nexo, não tem poesia e nem tem sensibilidade é o verbo cru no presente que se esvai em linhas brancas, quero dizer nem em linhas porque as linhas não existem mais, é um universo branco que se borra com uma tinta preta, fedida, podre de palavras nulas.
Se eu pudesse pensar, ou agir, eu arrumaria meu quarto, tiraria as roupas do chão, dobraria meus lençóis, terminaria aquele projeto, colocaria a vida no ciclo comum de nascimento, crescimento e morte. Mas eu não quero.
Prefiro essa cadência de desencontros que não me encontra, prefiro esse samba de nada que um dia se chamou silêncio, prefiro a minha cadeira, a minha porta, os 3 metros de quarto em que me encontro nesta segunda feira ensolarada, mas fria.
O silêncio já não diz, o que é certo não convém, o que era para ser brilhante ficou perdido e o homem que eu me tornaria não faz mais diferença.

domingo, 10 de maio de 2009

Corpos Celestes

"Wrapped in Colour", Andrea Blackman


Se tua vista alcança-me em palavras, não te desesperes: és habitante em meu espaço. Todavia, se buscas ainda nestes infinitos: o corpo: haverás de tecer outras redes; caminhos de cometa haverás de percorrer. E eu-ilha, eu-planeta, permanecerei naquela mesma órbita, permanecem as mesmas coordenadas. Estarei aqui, à espera da colisão, talvez impossível, porém desde há milênios em mim inscrita
-
profetizada.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Não te enganes, isto é prosa


um dois três... cigarros
nunca aprendi a tragar
mas sorvi cada um deles
- teu prazer secreto -
como se teu sexo fossem

sexta-feira, 17 de abril de 2009

O Encontro ou "A persuasão de Caronte"


Orfeu, de Moreau (1826 - 1898)


Passos que se cruzam entre pernas que se trançam, nos pés sapatos, meias, pêlos, peles áridas que não se tocam e vão andando, misturando, corporificando e massificando tantos eus que estão aglutinados em nós. Neste mar de loucas enunciações entrecruzadas, entrelaçando-se, na grande metrópole o coito cotidiano segue, são milhões de referências, citações e soberbas ironias. Daqui ele vai para lá, risos, risadas, gargalhadas e histerias recheiam a tarde, passos entre braços, entre bolsas, entre rádios-celulares de alta resolução com seus mega-pixels que retratam o nada que se vê dentro de tudo. Corre as flores para a entrega, zarpa a moto pro delivery, são pastas de executivos, cabelos batidinhos, saias, meias calças, lojas, frango assado rodando na porta da padaria, exposições de arte assando dentro das galerias, livros, descontos, comprados, vendidos, difundidos, amassados, amarelados. Ali no café, depois no banco pra ir pro ponto. Prédio que mete tudo no céu sem vaselina ou saliva pra deslizar. Caos de manhã, aquecimento global a tarde, programa a noite. Vasto, vasto campo subterrâneo, rodam as loucas catracas numa sinfonia jazzistíca, apitos sonoros fecham portas errantes de uma vida que passa entre faíscas soltas dos fios elétricos que guiam o senhor Clímeno e seu cão Cérbero, que cuidam da distribuição das vidas pelas grandes estações subterraneas. Num instante, no meio da multidão que habita o Reino dos Mortos, o tempo se dilata. A lira põem-se a chorar. Eurídice vestida no seu manto azul celeste segue o fluxo putreficado dos que já morreram, mas por um instante ouve, reconhece e lembra. Olha para o tocador que com lágrimas nos olhos deixa-se engolir pelo som eletrizante do caos, ele abaixa a cabeça com sua candida lágrima a corroer o peito preenchido de silêncio. Eurídice olha-o e segue seu caminho.

domingo, 22 de março de 2009

Sobre as meninas e os lobos

Com o tempo a gente aprende que seguir regras, preceitos e dogmas não é garantia de que tudo vai dar certo. Ao contrário. Regras, preceitos e dogmas presumem uma realidade ideal e, muitas vezes, esquecemos o sentido da Vida em nome de aparências que se pretendem ideais. Deixamos de existir em nossa integridade para que tudo pareça e chegamos a crer mais nas parecências do que no ser. Regras, preceitos e dogmas geram medo. Medo de não ser aceito, medo de magoar, medo de ser magoado. Geram também perversidades. Porque tudo parece, há aqueles que em certas esferas de vivência suprimem de alguma forma o outro, o que teme e também o bravo. O inferno não são os outros. Há um pequeno inferno em cada um de nós e é preciso vencê-lo não apenas nas aparências. Apenas o verdadeiro respeito pelo outro; o reconhecimento dos limites entre o eu e o outro permitem a liberdade, permitem que a Vida se efetive em seu mais humano significado. Com o tempo a gente aprende que as piores coisas acontecem com quem menos merece. Aprende-se tarde demais, porém é quando as imagens falsas são quebradas e os elos verdadeiros fortalecidos.

Isso não foi um capítulo de auto-ajuda e não pretende ser nada além de um desabafo (desculpa, Menino Trovador, não foi esse o combinado para este espaço... mas eu precisava gritar... sei que ao correr seus olhos sobre essas linhas, eu os sentirei como um abraço...)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Tristeza no Céu



No céu da cidade

há também uma hora de

silêncio

Em que Deus não se pergunta nada.

ele só faz convulsionar lágrimas,

torrenciais e tempestivas,

de crocodilo pelo chão.

E põe-se a assoprar e apagar

os raios de sol

maldizendo

e extinguindo

um coloridinho

besta e inútil por de trás do morro.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Ausência



Beirut - Nantes
Found at skreemr.org


a mim, me confundem as tuas faltas
mais que a tua ausência em mim
a minha falta na tua falta
Campo Mourão/PR

domingo, 18 de janeiro de 2009

Fim de tarde na beira do mar


Relâmpago no mar,

é a mão de Deus que desce dos altos céus

para apanhar um golinho d'agua.

Marinheiro na beira do mar

senta,

bebe,

fuma

esperando que Deus alivie sua ressaca.



A lamparina acesa,

os barcos atracados no cais

Iaiá servindo um golinho d'aguardante

é o paraíso terreno.

Num fim de dia sem sol,

peixes fartos:

o silêncio da enseada se rompe,

às vezes pelos estrondos da mão n'agua,

às vezes pelo canto eufórico do marinheiro

à beira mar.

sábado, 17 de janeiro de 2009

"Hoje eu quero tocar a memória..."


Hoje eu quero tocar a memória com a ponta dos dedos e ouvir a quentura de sua face. Quando enternecida pelo longo tempo, a memória se nos dá febril. Seus beijos são labaredas em noite de chuva fina. Gosto de roçar os cílios na face dos dias passados; mas, sobretudo, amo sabê-los distantes de mim.
Desenho meu espaço neste instante e ao que não mais há, concedo qualquer gosto quimérico. As letras e as imagens são intensas como aqueles dias de sol em que estendíamos alvos lençóis sobre os varais; como as noites frias em que contávamos lágrimas sob a lua. Sempre a história de ontem; a mesma cor, o mesmo gosto.

Vou dando corpo às lembranças; vou lembrando o corpo de sensações então esquecidas. Esquecidas somente para que neste momento eu pudesse recordá-las; aproximam-se num tumulto de vozes como se me quisessem oferecer consolo, palavras de afeto.

Então revelo meu segredo em baixa voz: minhas mãos já aprenderam a morte. Pouco ou nada mudou. De nada valeu gritar o fim e anunciar novas paisagens. Sempre torno ao mesmo ponto, ainda que faça meu curso em espirais.

sábado, 3 de janeiro de 2009

"Algumas vezes, pessoas lançam ao mar..."

Algumas vezes, pessoas lançam ao mar pedidos de socorro em garrafas; outras vezes, os lançam por sob as portas e os fazem penetrar as casas e as vidas. Não importa em que língua falem, a quem queiram falar, ou o quê; são sempre os mesmos pedidos de socorro.

Não estou diante do mar; mas lanço garrafas com bilhetes e durmo ao canto gostoso das vagas. Um canto que não é, ainda, o murmurinho do mar; apenas o som do amor que eu imagino para aquele corpo de maré.

Maré - eu sei que não estará nunca, sem ir embora um pouquinho. Mas eu imagino: imagino infinitos e eternos; de outro modo não sei fazer. Os dedos brincam desenhos na quentura da areia, silenciosos grãos: invento meu novo amor.

Que os ventos não soprem antes que eu o saiba verdadeiro, quente, doce.

(outubro/2006)