quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Fragmentos (ou Contradições)

Olho para o mundo sem a desconfiança de quem acaba de ser ferido - ferimento causado por lanças inimagináveis.

Abraço. Beijo. Amo. Abraço sem braços. Beijo sem boca. Amor sem mágoa.

Vejo o presente como a um espelho que me devolve imagens invertidas do passado. Presente delicado; cores ricamente combinadas.

Não alcanço o dia em que senti pena de mim mesma em meu sofrimento de palavras.

Piedade? Posso percebê-la quando sou surpreendida pela confusão alheia. Desta vez não há como sentir-me culpada. Porém não consigo ser piedosa, daquela piedade distante; asséptica. Sinto-a como se mil cristais cantassem em estilhaços dentro de mim.

Mesclados aos fragmentos de transparência, líquidos quentes e frios - que não são ainda sangue.

São apenas uma idéia daquilo que poderia ser o sangue, sem perderem a propriedade de cobrir todo sentimento com cores e impressões indeléveis.


terça-feira, 28 de outubro de 2008

Exceção...

Brindemos, amigo meu!

Brindemos aos corações cativos, porque brindes à liberdade são clichê!
Brindemos aos copos que se quebram na mesa ao lado.
Brindemos aos aniversariantes de hoje e aos de ontem... e aos do mês passado, porque deles não me esqueci. Esquecer-me-ei dos aniversariantes do próximo mês?
Brindemos aos poetas, estão vivos e passeiam entre nós!
E peçamos piedade, piedade aos "puretas" que nada sabem sobre o nosso amor.
Brindemos ao poeta de régua e compasso, esquadro medindo o tempo e o espaço, ao poeta que amava Drummond e os seus três mal-amados; ao poeta que sorvido em "minutos de sabedoria" , mostrou-se sabedor de todos os segredos que convulsionam os nossos corações.


"Junto a ti esquecerei..."
(João Cabral de Melo Neto)

I
Junto a ti esquecerei as inúmeras partidas
- as cordas e as amarras nunca se quebraram
e talvez por isso eu permanecerei imóvel sob a tua influência...
Tu pesarás para mim como produto de âncoras
como a pedra amarrada do pescoço do pecador.
Os portos passarão a ser beira de cais
as terras longínquas nada mais me dizem
- quebrei a bússola para evitar a tentação.
Tua presença é poderosa como urros na floresta.
Sinto que extingues em mim
a sombra dos navegadores.

II
A tua atitude te eleva para o alto.
Vejo que cortaste definitivamente todas as amarras.
Daqui eu adivinho os olhos dos homens
perdidos no tempo que nada descobrirão de ti.
Deixa que os não-poetas falem de tua beleza,
esses nunca compreenderão o que há em ti de sombras
de sementes germinando, de vozes de cavernas.
Nem ao menos que é o teu olhar que nos aproxima
que nos torna irmãos para o resto do tempo.
Eu te reconheceria entre todas, porque tua presença eu a pressinto.
Deixa que tuas formas eles a tomem pela essência.
Esses te perderão ainda mais
e nunca compreenderão tuas inúmeras sugestões
que tu mesma desconheces.

III
Esquecerei os teus convites de fuga.
As coisas presentes serão absolutamente insignificantes.
Sentir-me-ei em tua presença como o primeiro homem
que se ia apoderando de todas as formas conhecidas.

IV
Esquecerei todos os convites de fuga.
Os portos serão para nós apenas
as âncoras e as amarras.
Nossos olhos não mais distinguirão
caravelas e transtlânticos sobre o mar.
Nossos ouvidos não mais perceberão
o barulho das ondas que são um chamamento constante.
Então leremos poetas bucólicos
debaixo de uma árvore que deverá ser frondosa.
Indefinidamente rodaremos em torno dela como num carrossel
indefinidamente estarás comigo.

1937

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O tempo da espera...

O tempo da espera também me faz viver. Contar nos anéis cada segundo; saber que entre os dias há o instante em que silenciam os males. Eu queria levar meus pés aos campos onde caminha seu corpo; nos espaços em que, graves, acenam seus gestos. Porém, sei que isso não faria de mim, sua companheira; não seria pra você, aquela que sou. Decerto, sabíamos quem éramos, por isso existiu o amor. Quisera eu fosse o corpo e o rosto em que pudesse repousar sua face ao fim do dia, dos tantos dias que parecem não ter mais fim. Entretanto, sabemos, isso não faria de mim melhor amante — e não aprendi de todo, confesso, como ser a amante esperada. Espero, apenas. Brincando com a areia da praia, juntando esses peixinhos que pontuam minha vida — espero. Que há sempre neblina em meus olhos; e não tem sido também a névoa a nos fazer próximos? Ouvir o mar e seus ruídos é quanto basta para que permaneçam o nome e o amor. Eu quero tanto, tanto... e tanto querer já está contido em meu silêncio. O mesmo silêncio que sustenta minha espera pelo impossível, pela luz nascendo de sua boca e adormecendo estes cortes, estas inquietações.

*texto antigo, com pequena variação.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Biografia para Neusa Sueli com o mesmo desfecho de Emma (a Bovary, de Flaubert)

Inspirado numa leitura de Navalha da Carne


Hoje quando cheguei, o Vado ainda estava aqui. Então foi mais cedo que a gente brigou a briga nossa de todo dia. Antes, quando eu ainda me chamava Olímpia Eugenia, eu não brigava por nada. Ficava sempre quieta porque a tia me ameaçava bater e mais uma porção de pragas que me jogava se eu não procurasse andar direito. Eu ainda acreditava em Deus, naquele tempo, e tinha medo de sofrer todos os martírios que, dizem, existe no inferno. Agora eu sei que o inferno e a purgação são aqui mesmo nesta terra. Sei que o céu e o paraíso não existem em nenhum lugar.

Eu queria ter tido muitos irmãos, mas o dia em que eu nasci, em 17 de março de 1934, foi também o dia em que morreu minha mãe. Eu bebezinha fui ser cuidada por uma tia, ali mesmo na região de Sorocaba, onde o pai morava. A tia era boa. Era a tia Lurdinha quem me dava o comer e o vestir. Ela me ensinou a lavar, engomar e passar; me ensinou a fazer comida e a cuidar da casa.

Então, quando eu tinha seis anos e já sabia fazer todas essas coisas, fui cuidar do pai na tapera em que ele vivia. Desde que a mãe se fora, ele não mais conheceu mulher e passava os dias trabalhando na roça dos outros. Ele pouco falava comigo ou com qualquer pessoa. Quando chegava em casa de noite, ele tragava umas cachaças e cantava músicas tão tristes que me doía o coração só de ouvir. Parecia que ele já sabia que não existe nem céu nem paraíso. Só de vez em quando é que ele quebrava o silêncio e dizia: "- Limpinha! 'ocê precisa arrumar logo um marido, que não demora e eu desinfeto desse mundo e 'cê fica mais sozinha!".

Mas o pai não imaginava que eu queria, mesmo, era ser como a voz bonita de mulher que eu ouvia no rádio. Eu queria cantar cantigas que também enchessem qualquer coração de tristeza, tristezinha bonita, que faz o coração levinho.

O pai não queria saber do meu querer; me arrumou noivo e vestido. Eu tinha quatorze anos quando entrou aliança no meu dedo. Depois da festa, que durou três dias, o pai tomou uma colher de arsênico e descansou o corpo que carregava a alma havia tanto tempo morta.

Meu marido era homem bom e mascate. Junto dele, viajei muito por esses interior todos e aprendi toda sorte de vendagem fajuta. Ele também pouco falava comigo. Mas também não me batia, como fez o Vado ainda há pouco. O que me tristecia era ver tanta riqueza que ele vendia e a tão pouca que ele me dava. As peças estampadas que me negava eu via cobrindo o corpo das meretrizes nos lugarejos onde passávamos. Eu queria ser aqueles corpos e os vestidos que usavam, os anéis e colares que ostentavam nas janelas.

Um dia, nessas andanças, eu estava lavando roupa na beira do riacho, cantando as músicas tristes que o pai cantava para ninguém. Apareceu um moço, que era mais um boto de tão bonito, e disse que eu tinha voz de artista. Tinha certeza de que se eu fosse para São Paulo e me apresentasse na rádio, enricava em dois tempos e que ia viver coberta de luxo. Eu contei para o senhor meu marido e ele escarneceu de mim, numa gargalhada que ainda hoje toca na minha cabeça.

No dia seguinte eu parti com o moço bonito, me disse que eu não me chamaria mais Olímpia Eugênia Chalipp, mas Júlia Márcia, apenas. Na cidade grande, eu cantei. Cantei em um lugar bonito de paredes vermelhas de veludo, onde homens importantes aplaudiam minha voz. Ele disse que precisava ser assim, pois era ali que o dono da rádio me conheceria. Como eu era nova, eu precisava pagar para cantar, e como não trouxera nenhum dinheiro, dizia o homem boto, teria que me deitar com um senhor muito rico que pagaria para mim; se não o fizesse me cobriria de pancadas.


Eu queria cantar e me deitei com aquele senhor e com muitos outros, sem nunca receber convite para cantar em nenhuma rádio. Quando me atingiu a tísica, perdi minha voz e meu protetor. Não sei como me curei, pensava que fosse com o poder de Deus; não, agora não acredito mais em Deus. Em nenhum deus.

Uma vez curada, meu corpo recebeu muitos outros homens e nomes: Ana Pia, do Machado; Solange Magrinha, do Jorge; tantas de tanto. Hoje eu era a Neusa Sueli, do Vado. Agora, volto a ser Olímpia Eugênia, do meu pai. Como ele, mergulho numa colher de arsênico e desinfeto daqui.


*Texto com o qual representei a cidade de Osasco na Fase Estadual do Mapa Cultural Paulista 2007/2008.