sexta-feira, 30 de maio de 2008

Sou uma fazedora de caixinhas...

Eu sei fazer caixinhas. Nelas, escondo toda sorte de matérias. São miçangas, fitas, pedrinhas coloridas, agulhas e alfinetes, moedas sem valor, fotos e cartas, peças de antigos jogos de tabuleiro. Minhas caixinhas não são como a de Pandora. Não contêm quaisquer males. São inofensivas e, talvez, inúteis. Minto. Há dias em que algumas pulsam rancorosas; e sinto medo.

Traço nova caixa, esperando que desta vez permanecerá vazia, na compreensão exata das distâncias que nos cercam. Mas se toda grande distância não é de todo lacuna, poderia permanecer desabitado o novo espaço? Percebo minhas mãos a despregar botões de velhas camisas, amando-os como se fossem o corpo que um dia as vestiu. Não culpo estas minhas mãos. Buscam, apenas. Não um objeto, mas um halo de santidade. Algo como uma idéia. Um motivo. Qualquer sentido que as faça quedar em oração. E movem-se. Dezoito pequenas peças circulares abrigadas na caixa lilás. Lilás. Lilases são as flores nela desenhadas – o fundo em que repousam se faz entre azul e cinza, sem que possa ser dito cor de chumbo. A leveza desta combinação de cores será para sempre associada ao que na caixa está contido.

Precisarei de envelopes perfumados nesta tarde. Não conheço destinatário que os mereça; serão meus e ocuparão a caixa azul. São olhos. Pálidos. Aproximam-se de mim; sou agora o mirante. Tudo lhes pertence – toda terra, toda água e toda gente, até onde a vista alcança. Tudo. Todo o amor e toda a fúria. Poucos sentires para seu anseio em descobrir novos ares e aromas. Não. Nenhum endereço será inscrito em meus envelopes. Tremo por desconhecidas terras que jamais tomarão conhecimento de suas cores. Mas vejo, grande, a caixa azul. É um pouco céu. Um tanto mar. Em muito de sua altura, letra. Não poupo esmero e afeição no fabrico dessas caixas, mesmo quando ensaiam qualquer gesto de piedade.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Falsa Oração

em face a lucidez de suas palavras
ofereço a incerteza de minhas letras


Peço ao Senhor Jesus Cristo, por intermédio
das mitologias grega, egípcia, africanas, indígenas, cristã (...),
Que não me abandone nos momentos de cruzes
ou na crueza da aflição

Desde o dia de hoje até que me acabem os anos.

Que eu veja a escureza de alma dos seres humanos
e num ato de carrasco inexperiente, covarde e piedoso de si
Possa cravá-la no branco das folhas de papel
em cenas de flagelo intermináveis

Até que amanheça o dia.

Comprometo-me a mergulhar na poesia
e dela fazer meu pão de todas as horas
Comungar a minha vida
e nunca dizer não

Até que venha o tédio.


* para Fábio Gomes

terça-feira, 13 de maio de 2008

Se eu fosse...

Eram os seus gestos que eu amava. Amava de um amor investigativo que buscava decifrar as imagens desenhadas no espaço pelo movimento de suas mãos. Eu não gostava muito de falar, pois a cada frase dita, seguiam o sorriso e a pergunta: “O que você quis dizer com isso?”. O sorriso anunciava que ela já conhecia a resposta de antemão, a pergunta denunciava a mim mesma que eu não sabia como havia amarrado aquela seqüência de palavras e que não havia explicação para as coisas que eu pensara. Amava, mas sem reverência, aqueles gestos de professora. Meu amor era feito de inveja. Nas brincadeiras de criança, minha voz nunca era ouvida. Admirava-me com a atenção que todos lhe dedicavam quando se punha a nos contar histórias e a explicar coisas. Quando eu crescesse, era como ela que eu deveria ser — mesmo sabendo que jamais seria.

Se eu fosse... Esse era o tema de redação que nos foi proposto. Se eu fosse isso, faria aquilo; meus colegas quiseram ser muitas coisas e coisas extraordinárias fariam com as propriedades que viessem a adquirir em sua transformação. Foram prefeitos, governadores, presidentes. Médicos, professores, Deus. Jogador de futebol, pugilistas, costureiros. Príncipes, princesas, magos. Trapezistas, atores, milionários. Divertiriam a si e aos outros. Extinguiriam a miséria, a ignorância, as doenças. Já não haveria luto, dor e lágrima.

Eu, eu quis ser um pássaro. Naquele tempo, acreditava que os pássaros não fizessem quase nada. Acreditava que buscassem em seus vôos apenas o prazer de estarem livres. Um pássaro não se preocupava com outro pássaro, para o bem ou para o mal. Exatamente o que eu queria: voar, sozinha. Havia certa poesia no meu escrito de menina de nove anos. Poesia que continha e escondia minha fuga ao pressentir a impossibilidade de se construir algo importante. Era assim que eu tecia e justificava meus insucessos futuros.

Aconteceu que a professora gostasse do meu texto. Não apenas o leu em voz alta na sala de aula, como o leu em voz alta nos corredores para vários professores de outras turmas. No recreio, alunos de outras salas e séries pediam para ler minha redação. Êxito literário na 3ª série é coisa muito séria. Então eu sabia escrever? E se descobrissem que eu era uma farsa na próxima redação? Esses dias me trouxeram a questão que ainda permanece.

A professora quis que brincássemos de política. Pela primeira vez em muitos anos haveria eleições para presidente em nosso país. Fato de importância imensurável, já que muitas pessoas lutaram para que tivéssemos o direito de votar em eleições presidenciais. Pois então, deveríamos nós, alunos da 3ª série A, em nossa sala de aula, numa escola pública de periferia, exercitar nossos direitos democráticos. Dois grupos de alunos escolhidos por sorteio apresentariam, cada qual, seu candidato e tinham a tarefa de defender suas propostas. O árduo desta tarefa estava em convencer os colegas eleitores de que nosso grupo e não o outro merecia seu voto.

Não poderíamos comparecer aos debates sem termos feito uma pesquisa sobre os presidenciáveis. Assistimos aos horários eleitorais na TV e recortamos notícias de jornal, tudo para compor o perfil de nosso candidato em oposição ao adversário. O mais importante, porém, foi conversar com nossos pais, tios, vizinhos, irmãos mais velhos, que compartilharam suas experiências com relação a um passado que nos parecia ao remoto e que agora ganhava vida diante de nossos sentidos.

Preparada para o debate, defendi com paixão o candidato no qual eu não votaria. Assim, nos meus primeiros passos em política usei palavras nas quais não acreditava com o objetivo de convencer e obter a vitória. Conseguimos eleger nosso candidato.

O episódio da redação somado ao dos debates e outras coisas das quais me lembro, fazem com que eu perceba o modo velado com que a professora exercia sua liderança. Jamais dissera “faça isso”, “é assim que deve ser”, mas seus gestos eram as palavras em vida. Palavras às quais deveríamos dar corpo para em seguida dissecá-lo.

Nunca mais pude deixar de pensar que as palavras eram perigosas e que dedicaria minha vida na tentativa de dominá-las. E eu já não queria estar só. Precisava compartilhar, aprender e ensinar - porém, preciso destruir a máscara que separa meu discurso de minhas ações. Discernir o que são as verdades e quais são as farsas.


(Escrevi este texto em 2004, pensando na professora Teka, mas como homenagem a todas as pessoas inspiradoras que me deixaram lições. Publicado originalmente por ocasião do 15º aniversário da Oficina Cultural "Sérgio Buarque de Holanda", em São Carlos, na antologiaConsurso Literário "Contos de Poesias", Tema: Brasil, mostra a tua cara. São Carlos, RiMa, 2005. A publicação no blog foi motivada pela postagem da Liz).

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Poligamia


*para ler ouvindo Poligamia (dedico à Paula Toller!rs)

São tantos rostos,
são tantas bocas,
são tantos ais,
são tantos uis.

São tantos pés,
são tantas mãos,
são tantos peitos,
são tantos erros.

São tantos e um,
são tantos em um,
são múltiplos,
são cúbicos.

são tantos sem razão.