domingo, 14 de novembro de 2010

Prosa sobre os olhos da amada

Antes de cruzar a soleira, portando uma valise e as carnes frias, arrancou, da própria face pálida, os olhos azuis de tempestade e os repousou sobre o criado-mudo. Sentenciou-lhes que não mais chorassem e que cuidassem do amado. Só então, pôde partir - cega - rumo ao desconhecido. O marido, que fora bom, compreensivo e raras vezes infiel, ao deparar-se com os olhos lacrimosos sobre o móvel, entendeu sem bilhete que desta vez não haveria volta. Adeus, amada. Sabia, também, que os olhos herdados eram desobedientes e continuariam a verter águas por tempo indefinido e acabaria por perder toda a mobília e os carpetes e os eletrodomésticos e o que restasse de valor. Por isso, foi com singular prazer que os levou à boca e, sem dificuldade, macerou entre os dentes os olhares incômodos, estrangulando as imagens da amada.

sábado, 13 de novembro de 2010

Uma fala à procura de qualquer personagem

— Olhe
vou lhe dizer uma coisa
mas não se acabrunhe, não
não se avexe
não é ofensa o que lhe faço
Tu é, em minha vida, uma moléstia desgraçada
um mal que nem Lázaro há de ter sofrido tão grande
cacei os santos tudin' e nada de alento
simpatia, encruzilhada, reza braba
tu é doença, mulher...
Mas, veja bem,
essa prosa é trova remendada
o que eu vim lhe dizer
e não se aperreie se lhe digo
é que ainda lhe quero bem, visse?

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A queda

"Naturalmente nunca é fácil viver" 
Albert Camus


Com ares de apaixonada - sem objeto de paixão - seguia rumo ao nada, talvez, sua libertação. Ruidosos passos correm a ponte como se houvesse pressa ou espera. Ninguém escuta os passos. Nenhuma pessoa ouviu o silêncio do coração em que se gestou o ato, a lágrima, o salto.