terça-feira, 13 de maio de 2008

Se eu fosse...

Eram os seus gestos que eu amava. Amava de um amor investigativo que buscava decifrar as imagens desenhadas no espaço pelo movimento de suas mãos. Eu não gostava muito de falar, pois a cada frase dita, seguiam o sorriso e a pergunta: “O que você quis dizer com isso?”. O sorriso anunciava que ela já conhecia a resposta de antemão, a pergunta denunciava a mim mesma que eu não sabia como havia amarrado aquela seqüência de palavras e que não havia explicação para as coisas que eu pensara. Amava, mas sem reverência, aqueles gestos de professora. Meu amor era feito de inveja. Nas brincadeiras de criança, minha voz nunca era ouvida. Admirava-me com a atenção que todos lhe dedicavam quando se punha a nos contar histórias e a explicar coisas. Quando eu crescesse, era como ela que eu deveria ser — mesmo sabendo que jamais seria.

Se eu fosse... Esse era o tema de redação que nos foi proposto. Se eu fosse isso, faria aquilo; meus colegas quiseram ser muitas coisas e coisas extraordinárias fariam com as propriedades que viessem a adquirir em sua transformação. Foram prefeitos, governadores, presidentes. Médicos, professores, Deus. Jogador de futebol, pugilistas, costureiros. Príncipes, princesas, magos. Trapezistas, atores, milionários. Divertiriam a si e aos outros. Extinguiriam a miséria, a ignorância, as doenças. Já não haveria luto, dor e lágrima.

Eu, eu quis ser um pássaro. Naquele tempo, acreditava que os pássaros não fizessem quase nada. Acreditava que buscassem em seus vôos apenas o prazer de estarem livres. Um pássaro não se preocupava com outro pássaro, para o bem ou para o mal. Exatamente o que eu queria: voar, sozinha. Havia certa poesia no meu escrito de menina de nove anos. Poesia que continha e escondia minha fuga ao pressentir a impossibilidade de se construir algo importante. Era assim que eu tecia e justificava meus insucessos futuros.

Aconteceu que a professora gostasse do meu texto. Não apenas o leu em voz alta na sala de aula, como o leu em voz alta nos corredores para vários professores de outras turmas. No recreio, alunos de outras salas e séries pediam para ler minha redação. Êxito literário na 3ª série é coisa muito séria. Então eu sabia escrever? E se descobrissem que eu era uma farsa na próxima redação? Esses dias me trouxeram a questão que ainda permanece.

A professora quis que brincássemos de política. Pela primeira vez em muitos anos haveria eleições para presidente em nosso país. Fato de importância imensurável, já que muitas pessoas lutaram para que tivéssemos o direito de votar em eleições presidenciais. Pois então, deveríamos nós, alunos da 3ª série A, em nossa sala de aula, numa escola pública de periferia, exercitar nossos direitos democráticos. Dois grupos de alunos escolhidos por sorteio apresentariam, cada qual, seu candidato e tinham a tarefa de defender suas propostas. O árduo desta tarefa estava em convencer os colegas eleitores de que nosso grupo e não o outro merecia seu voto.

Não poderíamos comparecer aos debates sem termos feito uma pesquisa sobre os presidenciáveis. Assistimos aos horários eleitorais na TV e recortamos notícias de jornal, tudo para compor o perfil de nosso candidato em oposição ao adversário. O mais importante, porém, foi conversar com nossos pais, tios, vizinhos, irmãos mais velhos, que compartilharam suas experiências com relação a um passado que nos parecia ao remoto e que agora ganhava vida diante de nossos sentidos.

Preparada para o debate, defendi com paixão o candidato no qual eu não votaria. Assim, nos meus primeiros passos em política usei palavras nas quais não acreditava com o objetivo de convencer e obter a vitória. Conseguimos eleger nosso candidato.

O episódio da redação somado ao dos debates e outras coisas das quais me lembro, fazem com que eu perceba o modo velado com que a professora exercia sua liderança. Jamais dissera “faça isso”, “é assim que deve ser”, mas seus gestos eram as palavras em vida. Palavras às quais deveríamos dar corpo para em seguida dissecá-lo.

Nunca mais pude deixar de pensar que as palavras eram perigosas e que dedicaria minha vida na tentativa de dominá-las. E eu já não queria estar só. Precisava compartilhar, aprender e ensinar - porém, preciso destruir a máscara que separa meu discurso de minhas ações. Discernir o que são as verdades e quais são as farsas.


(Escrevi este texto em 2004, pensando na professora Teka, mas como homenagem a todas as pessoas inspiradoras que me deixaram lições. Publicado originalmente por ocasião do 15º aniversário da Oficina Cultural "Sérgio Buarque de Holanda", em São Carlos, na antologiaConsurso Literário "Contos de Poesias", Tema: Brasil, mostra a tua cara. São Carlos, RiMa, 2005. A publicação no blog foi motivada pela postagem da Liz).

11 comentários:

felipemaia disse...

O eu lírico grita, mas grita um grito silencioso, porém geral, geral no sentido de ser a voz de muitos nessa luta pela abertura do seu "eu"...
Separar o discurso das ações? Noosssa, essa é difícil, mas não impossível!!!

Excelente texto!!!

Bjuxxxx*****
:D

marcela primo disse...

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Estou tentando, Lipe...
Estou tentando...

Beijos e obrigada pela presença constante neste nosso espaço!

Beijo!

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H. Henrique disse...

Comentei um post de uma amiga dizendo que nas artes, a raça humana; burra e insegura, busca uma perfeição inexistente em 98% dos próprios seres que a constituem. Seria o poder da palavra então também uma arte? Onde se busca ser (e neste caso se pode ser) aquilo que não é?

O que seria de nós se disséssemos só verdades.

Em relação a réplica - rs - pedirei a ele que me traga calcinhas de Paulinha meladas de fluído vaginal!

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RSRSRSRSRS

marcela primo disse...

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lol

Quando eu voltar à sua casa levarei uma da Rita Lee também, pode ser?

rs...

Quanto às suas considerações sobre arte, não é bem por aí... precisamos sentar para conversar sobre isso... já os românticos sabiam da inapreensibilidade do real e que um objeto de arte nunca é a expressão completa do ser, pois este só se nos dá em fragmentos.

Lembre-me de levar (anexo à calcinha com fluidos vaginais de Rita Lee) um texto muito bonito do Walter Benjamin, chamado "O Narrador". Tenho certeza de que será uma conversa e tanto...

=)

E, não, não era crescente... mas num céu tão triste e sem estrelas, estava belíssima a lua de hoje.

Beijo-te, flor!

PS. só para não perdermos o fio... também estou te devendo o conto de Cortázar e os poemas de Roberto Piva.

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Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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marcela primo disse...

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Sem remorsos, meu Amor?

O que são as máscaras senão camadas e mais camadas de remorso, culpa, medo, e também prudência e tardia responsabilidade?

Se você também se desfizesse de suas máscaras, se estivesse despido da vaidade e do orgulho que te movem, talvez pudesse entender que a minha decisão é a mais acertada para nós dois.

Para me compreender, meu Amor, você só precisa, fazer um exercício muito simples... o exercício de colocar-se no lugar do outro.

Não pense que tem sido fácil para mim. Se existe uma palavra que não define meus gestos, nestes últimos dias, é "frieza".

Tenho feito esse exercício... me colocando no lugar do(s) outro(s) tenho uma dimensão mais verdadeira do meu lugar.

Troquei meu papel de parede. Se antes buscava conforto e coragem no olhar terno e provocante, hoje me mutilo com a lâmina e o fogo daquela guerra chamada "amor".

E cada vez que fecho as janelas e os vejo: a bela mulher de vestido azul, ladeada por quatro belos jovens vestidos de branco; torna-se maior a minha convicção de que fiz a escolha certa.

Por favor, não me queira mal. Porque eu só quero o seu bem, porque eu te amo.

Amo mais do que me foi permitido.

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Anônimo disse...
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marcela primo disse...

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Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Talvez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.


(Pablo Neruda)

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Anônimo disse...
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marcela primo disse...

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Você quer me deixar louca, né?

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