sábado, 30 de janeiro de 2010

Ao amante




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Escondo minha face de seus olhos, porque a mim mesma não me posso ver em tantos espelhos. Ferem-me o peito essas imagens, entenda. 

Entenda que eu não busquei suas mãos; o contato se fez ao acaso, ou por algum motivo que somente se revelará quando vierem sobre nós as estrelas. As estrelas e a voracidade de suas luzes; verdadeiras luzes - luzes que roubam de nós todos os sentidos, deixando apenas a fome e o insaciável. Entenda. 

Entenda que eu não posso morar em seus braços, por mais hospitaleiros que possam parecer. Tenho já a minha casa e não foi sem lutas que levantei suas paredes; amo cada grão de areia que juntei para construí-la; amo o barro e o sangue com os quais temperei seu reboco; amo as frestas pelas quais observo os encantos de alheios jardins. Mas, entenda, que eu não posso tocar aquelas flores. 

E também não engane a si, se eu mesma sou capaz de ouvir seus pés à minha porta - você já está aqui dentro. Sinto que já está aqui dentro, mas eu, eu estarei sempre no detrás das velhas cortinas e não permitirei que seus olhos me alcancem, porque são viajantes. 

Tenho medo de seus olhos e não farei de meu corpo algum porto ou pouso; tudo o que sou são esses muros e essas velas apagadas.
 
Sei da fragilidade desta minha casa e antecipo a existência de tormentas, ou leve sopro, que a faça ruir. Neste dia terei de retomar a insegurança de meus caminhos, tortos. Serei novamente espírito peregrino em desconhecidos céus. Por isso, amante, peço que entenda. Entenda que, hoje, eu tenho pouco a oferecer, embora seus sinais sejam estrada para mim.
 
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