segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Biografia para Neusa Sueli com o mesmo desfecho de Emma (a Bovary, de Flaubert)

Inspirado numa leitura de Navalha da Carne


Hoje quando cheguei, o Vado ainda estava aqui. Então foi mais cedo que a gente brigou a briga nossa de todo dia. Antes, quando eu ainda me chamava Olímpia Eugenia, eu não brigava por nada. Ficava sempre quieta porque a tia me ameaçava bater e mais uma porção de pragas que me jogava se eu não procurasse andar direito. Eu ainda acreditava em Deus, naquele tempo, e tinha medo de sofrer todos os martírios que, dizem, existe no inferno. Agora eu sei que o inferno e a purgação são aqui mesmo nesta terra. Sei que o céu e o paraíso não existem em nenhum lugar.

Eu queria ter tido muitos irmãos, mas o dia em que eu nasci, em 17 de março de 1934, foi também o dia em que morreu minha mãe. Eu bebezinha fui ser cuidada por uma tia, ali mesmo na região de Sorocaba, onde o pai morava. A tia era boa. Era a tia Lurdinha quem me dava o comer e o vestir. Ela me ensinou a lavar, engomar e passar; me ensinou a fazer comida e a cuidar da casa.

Então, quando eu tinha seis anos e já sabia fazer todas essas coisas, fui cuidar do pai na tapera em que ele vivia. Desde que a mãe se fora, ele não mais conheceu mulher e passava os dias trabalhando na roça dos outros. Ele pouco falava comigo ou com qualquer pessoa. Quando chegava em casa de noite, ele tragava umas cachaças e cantava músicas tão tristes que me doía o coração só de ouvir. Parecia que ele já sabia que não existe nem céu nem paraíso. Só de vez em quando é que ele quebrava o silêncio e dizia: "- Limpinha! 'ocê precisa arrumar logo um marido, que não demora e eu desinfeto desse mundo e 'cê fica mais sozinha!".

Mas o pai não imaginava que eu queria, mesmo, era ser como a voz bonita de mulher que eu ouvia no rádio. Eu queria cantar cantigas que também enchessem qualquer coração de tristeza, tristezinha bonita, que faz o coração levinho.

O pai não queria saber do meu querer; me arrumou noivo e vestido. Eu tinha quatorze anos quando entrou aliança no meu dedo. Depois da festa, que durou três dias, o pai tomou uma colher de arsênico e descansou o corpo que carregava a alma havia tanto tempo morta.

Meu marido era homem bom e mascate. Junto dele, viajei muito por esses interior todos e aprendi toda sorte de vendagem fajuta. Ele também pouco falava comigo. Mas também não me batia, como fez o Vado ainda há pouco. O que me tristecia era ver tanta riqueza que ele vendia e a tão pouca que ele me dava. As peças estampadas que me negava eu via cobrindo o corpo das meretrizes nos lugarejos onde passávamos. Eu queria ser aqueles corpos e os vestidos que usavam, os anéis e colares que ostentavam nas janelas.

Um dia, nessas andanças, eu estava lavando roupa na beira do riacho, cantando as músicas tristes que o pai cantava para ninguém. Apareceu um moço, que era mais um boto de tão bonito, e disse que eu tinha voz de artista. Tinha certeza de que se eu fosse para São Paulo e me apresentasse na rádio, enricava em dois tempos e que ia viver coberta de luxo. Eu contei para o senhor meu marido e ele escarneceu de mim, numa gargalhada que ainda hoje toca na minha cabeça.

No dia seguinte eu parti com o moço bonito, me disse que eu não me chamaria mais Olímpia Eugênia Chalipp, mas Júlia Márcia, apenas. Na cidade grande, eu cantei. Cantei em um lugar bonito de paredes vermelhas de veludo, onde homens importantes aplaudiam minha voz. Ele disse que precisava ser assim, pois era ali que o dono da rádio me conheceria. Como eu era nova, eu precisava pagar para cantar, e como não trouxera nenhum dinheiro, dizia o homem boto, teria que me deitar com um senhor muito rico que pagaria para mim; se não o fizesse me cobriria de pancadas.


Eu queria cantar e me deitei com aquele senhor e com muitos outros, sem nunca receber convite para cantar em nenhuma rádio. Quando me atingiu a tísica, perdi minha voz e meu protetor. Não sei como me curei, pensava que fosse com o poder de Deus; não, agora não acredito mais em Deus. Em nenhum deus.

Uma vez curada, meu corpo recebeu muitos outros homens e nomes: Ana Pia, do Machado; Solange Magrinha, do Jorge; tantas de tanto. Hoje eu era a Neusa Sueli, do Vado. Agora, volto a ser Olímpia Eugênia, do meu pai. Como ele, mergulho numa colher de arsênico e desinfeto daqui.


*Texto com o qual representei a cidade de Osasco na Fase Estadual do Mapa Cultural Paulista 2007/2008.

3 comentários:

O Menino Trovador disse...

Ma, me arrepiei. Esse conto é um pulso de morte.
Vou senti-lo mais uma vez.

Emil disse...

Gostei bem bastante! Já pensou em expandir?

marcela primo disse...

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Mu,
pensei que você conhecesse esse texto...

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Emil,
acho que me perco quando tento escrever textos mais longos, então procuro sempre ser mais econômica.
Esse texto, mesmo, eu cortei bastante dele e, ainda assim, tem algo que continua a me incomodar.

Beijin!

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