Fui agora mexer nas tuas cartas.
Quem pudesse voltar a acreditar
Nessas palavras doidas e transidas
De febre no delírio da paixão
Que arrastaram num sonho as nossas vidas
Misturando-as na mesma reacção!
Aqui há um juramento além da morte.
Ali dizes que vens logo à noitinha;
E um cheiro a vinho e a fruta – Que doidice!,
Paira naquele quarto de hotel
Onde fiquei três dias e três noites
Esquecido de tudo à tua espera!
Estávamos em Março; Primavera.
Nesta um abraço ainda cinge e aperta
Meu corpo vibrante,
E ali rasga o papel o teu ciúme
Num beijo sensualíssimo de amante.
Além, mais alto, impões que te apareça
– E a noite era uma noite muito fria!
Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?
O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: «Não volto a procurar-te.»
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.
Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
– Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer
– Ficarmos alheados ou suspensos
–Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...
Não leias estes versos.
Tudo isto,Tudo isto, afinal, é só mentira.
(Antônio Botto)
António Botto nasceu em Abrantes, em 1897, tendo vindo a falecer em 1957, no Brasil, para onde emigrara em 1947. Viveu em Lisboa e foi contemporâneo e amigo de Fernando Pessoa.
Lindo poema, lindo mesmo.