sábado, 22 de setembro de 2007

Amor Perfeito


Meu peito acordou bosque pleno de flores cor-de-roxo anunciando a chegada da primavera. Retiro-nas, uma a uma, delicadamente e desde a raiz. Com um laço de fita, arranjo-nas em buquê e as ofereço ao amado ausente.


Violeta Parra - Gracias a la Vida
Found at skreemr.com

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Resposta em duas partes

Poema que escrevi durante uma série de conversações poéticas com o amigo Fábio Leonel de Paiva e com o qual representei a cidade de Osasco no Mapa Cultural Paulista no biênio de 2005/2006.


Resposta em duas partes

I


Altaneiros teus versos cruzam mares
De palavras concertadas em luz...
O tolo viu-se belo em teus cantares
— melodia e vaidade, sonhos nus —

Faz-se um mundo o que era tão estreito
E dilui-se já em questão cruel:
Que beleza existiu no antigo feito?
Alçou, teu canto, uma pedra ao céu.

Nenhum mérito ou leveza contidos
No prisma com carinho esquadrinhado,
Na dedicatória tão mal escrita,

Nos alheios ditos... minha desdita...
Pois são um grito desequilibrado
— Tecido sobre versos jamais lidos.

II

Por instantes o pássaro impedido de cantar se imaginou liberto
E agora o eco da gratidão soa triste em mim
Em quaisquer ouvidos sou

Voz muda
Interrompida
Esquecida

Nos subsolos
escorregadios
da memória escondida

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O Olho



Sentado na cadeira, os olhos piscam. O quarto está vazio, fumaça, cinzas e o silêncio das auroras de meus dias. Um espelho, uma cadeira, os olhos que abrem e fecham. Sentado na cadeira, as pupilas dilatam-se, a formigação de meus ais abrem meus poros e do espelho me subtraio. Só olho o olho que se olha refletido, o olho vermelho.
O olho que abre.
O olho que fecha.
Num estado eufórico de dançar o olho se olha. Sentado na cadeira percebo que o olho é só uma metáfora do olho que vejo, é só uma metáfora daquilo que entendo. Eu que não entendo nada do que vejo.
O amor ganha um nome e está representado pela figura em cima do criado mudo, a dor ganha um nome e é representada por Januário Almeida Barbosa, o homem que se foi.
O braço não é mais o braço o braço entrelaçado é um abraço. E numa explosão de cores a mente se dissolve o vermelho torna-se azul, que se explode num amarelo derramado da gema do ovo caído, e a água da torneira com seu barulhinho azul de gotejar alucina meus ouvidos numa sinfonia fácil de executar e o branco que se funde na janela, o copo de leite se transforma em nuvem, algodão tão macio de pisar e a tinta verde que jorraram no quintal parece tão fofinha, do décimo andar sinto vontade de saltar no verde clarinho, tapete macio para se deitar. Enquanto o roxo, o lilás vão tomando conta de mim, meus sentidos se dissolvem no amarelo quentinho que vai inundando paredes, provocando gargalhadas e despertando felicidades fáceis de sentir. Ele não voltará e o quarto ali, refazendo, resignificando, numa catarse sem fim.
Sentado na cadeira, os olhos piscam.

Canções

Fui agora mexer nas tuas cartas.
Quem pudesse voltar a acreditar
Nessas palavras doidas e transidas
De febre no delírio da paixão
Que arrastaram num sonho as nossas vidas
Misturando-as na mesma reacção!

Aqui há um juramento além da morte.
Ali dizes que vens logo à noitinha;
E um cheiro a vinho e a fruta – Que doidice!,
Paira naquele quarto de hotel
Onde fiquei três dias e três noites
Esquecido de tudo à tua espera!

Estávamos em Março; Primavera.

Nesta um abraço ainda cinge e aperta
Meu corpo vibrante,
E ali rasga o papel o teu ciúme
Num beijo sensualíssimo de amante.

Além, mais alto, impões que te apareça
– E a noite era uma noite muito fria!

Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?

O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: «Não volto a procurar-te.»
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.

Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
– Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer
– Ficarmos alheados ou suspensos
–Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...

Não leias estes versos.
Tudo isto,Tudo isto, afinal, é só mentira.

(Antônio Botto)

António Botto nasceu em Abrantes, em 1897, tendo vindo a falecer em 1957, no Brasil, para onde emigrara em 1947. Viveu em Lisboa e foi contemporâneo e amigo de Fernando Pessoa.

Lindo poema, lindo mesmo.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Nossa Senhora dos Ventos

O fino fio de vento que entrava pelo quarto, soprava uma cantiga e brincava com os pêlos do braço da menina que olhava para fora e via um movimentar calmo de lá para cá das folhinhas das árvores, era a origem dos ventos.
Uma cigana de traços firmes, espelho na mão, saia rodada e coroa na cabeça saía para a boemia da noite, para a liberdade bacante do Breu, seu mais que velho e conhecido amigo. Cigana brava, sorria e dançava levemente e quando sua saia rodava o vento obedecia de lá para cá, de cá para lá. A cigana andava por entre matos e se sentia movida pela música que seus guisos emitiam ao bater nas pedrinhas do chão e corria, dançava, rodopiava e os ventos voavam em torno das saias que espiravam em zunidos fáceis de cantar e ela assoviava e cantava e rodava e voava num ato livre e leve de dançar, caía deitada nas relvas e dos pássaros e das terras se desposava. O vento úmido molhava a terra firme deixando um barro mucoso por entre as pernas do mato, tufões copulavam e uma prole de ventinhos nascia, um manso ranger de dentes, as mãos apertando o barro, os gemidos eólicos que batiam no telhado da cidadezinha era resultado da profanação da cigana que ventando deixava que as senhoras árvores ouvissem os ecos da noite fria. Ali eram só os ventos e as terras, a cigana e o espelho, a noite e a lua que refletida no espelhinho prenunciava um azul clarinho e um amarelinho meio avermelhado no horizonte. A cigana e seus guisos, as saias que rodavam, os cabelos que batiam, os dentes que rangiam. Logo pela manhã, os cabelos presos, os passinhos cautelosos, apenas um rebolar de quadril e o tontinho do guisinho apenas soando uma brisa fresca que movimentava a folha na água, que despetalava a ultima margarida e entrava pela janela, brincando com os pêlos do braço da menina que olhando pela janela perguntava "qual a origem dos ventinhos?"

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Arlequinal



Não sou um mundo só de palavras:
posso oferecer deleite e refinada vinha
a quaisquer-bem-me-queres.

Sei mais que sons e gestos ensaiados;
quando finda a luz, cessa a cena
- e findará, em qualquer aurora.

Apesar da máscara pregada à cara,
há sempre uma amarra que se desprende -
um losango que cai.

São pesadas as minhas vestes arlequinais;
não obstante, tenho o coração à mostra.
Nu, mas em retalhos.


§ Ilustração de Sidnei Akiyoshi, feita em 2005 para o layout do meu antigo blog.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Túnel das ilusões


Eu andava por aquele túnel e percebia-me chegando ao fim, a luz estava próxima, os pensamentos envoltos em sensações de um outro lugar. Eu andava por aquele túnel e eu não estava ali, estava nas quimeras esplendorosas, no abstracionismo de amores novos e perdidos, mas ali eu não estava.

Eu andava, a luz me cegava, o pensamento me anestesiava. Eu estava ali naquele túnel e ela também, negra flácida, cabelos grisalhos, olhos caídos, desaprumada com um cadáver no colo. Tetas murchas, azeite jorrado, fétidas entranhas, o pretume do chão se molhava e a sujeira misturava-se ao odor, urinava.

Eu não estava ali, ela estava. Eu tinha a moeda, ela pedia. Eu tinha o casaco, ela tremia. Eu tinha os sonhos e eles esmagavam-na.