sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Saldo

"Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” - não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rígido, desprovido de qualquer dúvida: 'estamos indo sempre para casa'".
Lavoura arcaíca - Raduan Nassar


O tempo senhor do destino se encarrega de readequar os propósitos da vida. Era assim que eu divagava e me distanciava de tudo aquilo que um dia me compôs, numa quase noite de réveillon eu percebia como o dia, que antecedia o nascimento de um ano bebê, morria.

O ar se condensava e o tempo se estendia em fatias espessas me obrigando a olhar para minha vida, de repente um telefonema. Eram as contas sentimentais que eu protelava tanto para acertar com aquele que um dia partiu sem saber o quanto me doía agora e sempre a falta que seu lugar à mesa de homem da casa fazia.

Eu tentava não embargar a voz e me mostrar o mais forte que eu conseguia, não podia me dar ao luxo de sentimentalismos toscos em plena véspera fúnebre de morte e nascimento, os compassos do relógio espalhavam minhas lágrimas na cadência desordenada de um tic tac sem fim, era uma bomba prestes a explodir, era uma agonia de morte e um sopro de vida.

No computador surgiam as inúmeras ramificações do passado e o presente se transformava em incerteza pelas coisas que fiz, pelas coisas que deixei de fazer e pelas coisas que eu não poderia mais me arrepender de ter feito.

O tempo senhor do destino se encarrega de readequar os propósitos da vida - nessa falta de raiz, nesse chão arenoso e movediço eu procuro calcar a estabilidade que protela em chegar, minhas dividas sentimentais me assolam - é hora de morrer ano sangrento! - é hora de quebrar a linearidade do tempo num pequeno átimo de metafísica que transforma o velho em novo, o número 23:59 se torna 00:00, um choro derradeiro, um passo para o espaço e a obrigatoriedade de sonhar. É tudo novo de novo e de novo num ciclo sem fim, deve ser a tal 'vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro'.

Eu tenho medo do relógio não virar dessa vez, do agonizante vegetar, da fada da prosperidade esquecer o número da casa onde eu estarei esperando sua visita, do feto nascer morto.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

sem poema

desde que amo e tenho sido amada,
já não penso
em sílabas poéticas;
basta-me a fonética
dos teus sussurros e dos meus gemidos
assim
confundidos
numa só respiração:
eis a minha inspiração;
sem poemas e sem prantos
apenas todos os dias e o encanto
de ser tua e seres meu.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Atrito



atrito: sm. 1. Fricção entre dois corpos. 2. Deisnteligência, desavença.

"Flor, minha flor
flor vem cá."
Grupo Galpão - Romeu e Julieta
Estávamos parados olhando para aquele horizonte negro que se abria no terraço da casa, a cidade inteira brilhava no espaço corrosivo do silêncio.
- Você quer uma cerveja?
- Quero.
- Você está bem?
- Estou.
- Vamos conversar?
- Aham.
- Fala alguma coisa.
- Ah, sim sobre o que você quer falar?
E era nessa sucessão de sins, e de agradabílissimas respostas que vertíamos o silêncio em repetitivos rodeios de cortesias. Eu não queria a cerveja e ele não queria falar, o céu queria ser noite e a noite trovejava incessantemente raios de silêncios que afastavam cada vez mais aquele pequeno espaço entre as duas cadeiras colocadas diante do infinito.
Eu pensava no mundo que se descortinava em contradições dentro dos meus pensamentos e todos os nãos que precisavam ser ditos fugiam da materialidade do som da minha voz, me perdia na abstração de sensações e nas muitas implicitudes que rondavam a minha falta de verbo - eu queria dizer que eu não consigo dizer não, eu não consigo brigar, eu não consigo lidar com as situações de desespero e de conflito, por isso eu aceito. Eu sou esse apanhado de nãos que não se materializam, eu sou o conflito interno que não se propaga. - Diante dessa lua imensa nos acariciávamos e sorríamos para o nada, engatilhavamos muitos assuntos para abafar o ruído do silêncio e fazíamos planos de cruzeiros pelas águas do Pacífico. Era perfeito sanar o tédio com miraculosos planos de vida que pressupunham um futuro, era no depois que transbordávamos a amplitude das dissonâncias do hoje, era sempre numa espera que alimentávamos a felicidade e que esquecíamos as nossas competições - eu queria dizer que eu não vou falar algo que você não queira escutar, justamente porque você não quer escutar eu não falo, tento amenizar meus pareceres e tento abrir a escuta para o que eu não ouço de você, mas eu não ouço nem mesmo os seus defeitos ou o que te torna humano, você não transparece, eu não transpareço, nós ficamos então na linha da perfeição, daí falta atravessamento, construção em conjunto, falta dueto no videokê e na vida, falta a falta, a saudade, e as fraquezas da carne que a saudade proporciona mesmo que essas fraquezas aconteçam no mundo subterrâneo da sua mente - eu gostava de abraçar você nos meus momentos de intempéries, eu sorria para você na inexatidão do meu sim, a gente transava na contradição das nossas idealizações.
- Vou pegar outra cerveja.
- ...
- Você quer?
É claro que eu não quero cerveja, eu nunca gostei de cerveja, eu sempre te enganei.
- Você quer?
- Traga a mais gelada.
E num sorriso voltamos ao ato amoroso de observar as malditas estrelas etílicas que reluziam na lata de cerveja.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Conto sem fadas

O herói desleal e uma princesa sem virtudes.
Uma ideia falsa e a má atitude.
Juntos no descaminho
- mais e mais distantes -
sozinhos.

domingo, 14 de novembro de 2010

Prosa sobre os olhos da amada

Antes de cruzar a soleira, portando uma valise e as carnes frias, arrancou, da própria face pálida, os olhos azuis de tempestade e os repousou sobre o criado-mudo. Sentenciou-lhes que não mais chorassem e que cuidassem do amado. Só então, pôde partir - cega - rumo ao desconhecido. O marido, que fora bom, compreensivo e raras vezes infiel, ao deparar-se com os olhos lacrimosos sobre o móvel, entendeu sem bilhete que desta vez não haveria volta. Adeus, amada. Sabia, também, que os olhos herdados eram desobedientes e continuariam a verter águas por tempo indefinido e acabaria por perder toda a mobília e os carpetes e os eletrodomésticos e o que restasse de valor. Por isso, foi com singular prazer que os levou à boca e, sem dificuldade, macerou entre os dentes os olhares incômodos, estrangulando as imagens da amada.

sábado, 13 de novembro de 2010

Uma fala à procura de qualquer personagem

— Olhe
vou lhe dizer uma coisa
mas não se acabrunhe, não
não se avexe
não é ofensa o que lhe faço
Tu é, em minha vida, uma moléstia desgraçada
um mal que nem Lázaro há de ter sofrido tão grande
cacei os santos tudin' e nada de alento
simpatia, encruzilhada, reza braba
tu é doença, mulher...
Mas, veja bem,
essa prosa é trova remendada
o que eu vim lhe dizer
e não se aperreie se lhe digo
é que ainda lhe quero bem, visse?

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A queda

"Naturalmente nunca é fácil viver" 
Albert Camus


Com ares de apaixonada - sem objeto de paixão - seguia rumo ao nada, talvez, sua libertação. Ruidosos passos correm a ponte como se houvesse pressa ou espera. Ninguém escuta os passos. Nenhuma pessoa ouviu o silêncio do coração em que se gestou o ato, a lágrima, o salto.



 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

escritos

como a caneta fere o papel
e a faca ferisse a carne
a alma, abreviada
pela ausência

domingo, 24 de outubro de 2010

Vida

que meu verso seja livre
sem tema ou temor
e em sua rima escondida
neste instante, ainda
recuse a sina e o refrão

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Ciclo

"Ah, o amor é um capitoso vinho,
que nos embriaga,
que nos embriaga com um só pinguinho."

Furacão furioso que corrói a calmaria dos campos.
Tempestade intempérie que amolece o barro da terra e funda a orvalhada nesse chão de incertezas.
Em minutos se faz a calmaria, cheiro de terra molhada, mormaço, céu alaranjado e um clima de possibilidades propícia o desabrochar, as gotas embebedam a semente, enraiga-se a sensação de pertencimento e surge o botão.
E desabrocha em latentes e febris tensões, comichões, calores nítidos e plenos de sensações pulsantes. Toda flor que desabrocha quer ser deflorada ou pelo vento que passa, ou pelos dedos firmes da mão que rija acolhe, pela abelha que suga o mel ou pelo chão que nutre a força.
Cor, coito e vibração segue a semente gozando e florindo seus dias, sedenta e cheia de erupções sua seiva transborda pulsante o aroma orgiástico, enamorado e primaveril. Fecunda solos pelo vento, poliniza tudo que outrora fora devastado, multiplica-se em gozos caleidoscópicamente fulgurantes para aos poucos ir-se esvaindo, murchando, apodrecendo.
Então transforma-se, aduba o solo e espera furacões.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

"Fosse eu quem partisse..."

"A vida é a arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida"
Samba da Benção
, Vinicius de Morais

fosse eu quem partisse:
escreveria
em teus espelhos
a despedida em carmim

se fosses tu a partir:
embeberia
o carpete de meu quarto
com teu perfume para que
a despedida fosse um
pouco a pouco e pouco

mas porque foi a vida
a nos partir
em dois e os corações:

deixo-te
em silêncio desesperado
enquanto tu
me deixas somente lembranças
sem felicidades ou adeus.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Cadência




"Comprei a casa de um amor, sem estar na posse dela;
vendida embora me ache, possuída não fui ainda."


(Julieta cena ato III cena 2)
Dancing couples - Ivan Koulakov



Vai longa noite,
vai ao encontro
de sonhares noturnos vãos,
fonte sibilante de horas ausentes,
amansa
a saudade silente.
Volta!
Volta,
pela madrugada
alma prudente
que a falta da lágrima prestante
seca a retina
nebulosa
dos meus olhos cadentes
torna vã a suplica
latente
de um louco amante enfermo,
febril e
descrente.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O que não é o que não pode ser

Das flores que ainda não colhi, dos beijos que nem se quer vou provar, dos trabalhos que não são pra mim, das provas que já reprovei, das que me reprovarão, da falta de vontade de prosseguir, da incerteza do caminho que vou trilhar, da lágrima que teima em não cair, do cabelo que finjo não cortar.
De todas as situações que eu não quero me livrar, dos problemas que não quero resolver, da existência que não florescerá, dos amigos que não fiz, dos amigos que não vi, dos que não pedi, dos remédios que não tive coragem de tomar, do pessimismo que tento me livrar, dos rumores do coração que não terminei.
Das provas, dos trabalhos, dos ritos
do que me impede
do que me pesa
do que me esmorece
do que me desencoraja
do que não consigo escrever
do que não tenho motivo pra falar
daquilo que não acontece
da vida que não é pra mim
da vida que não vivi
da idéia de vida
da imagem subjetiva da vida
da imprecaução da felicidade
da não felicidade
do medo
do erro
do medo do erro
da possibilidade
da negativa
do não
da desistência de mim.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

"da tua boca..."

da tua boca
recebo: o gosto e o desgosto
com ela me degustas e
dela, jamais ouço
o que gostaria ouvir;
mas se vens
assim
mansinho
também me calo
e sufoco
e deixo morrer
(quentinho no peito, en-
quanto me entrego)
a minha vontade
do teu gostar;
pois se de mim levas o gosto
e me provas
sem nunca
gostar de mim,
outros sabores há
que me provem
e me levem
e me deixem
e se deixem
onde tu, jamais, ousaste tocar.

domingo, 18 de julho de 2010

terça-feira, 13 de julho de 2010

"saudades de quando..."

saudades de quando eu jamais fôra tua...
meu corpo era o templo
o sexo, um rito
e não se havia criado este dogma chamado Amor.

domingo, 11 de julho de 2010

Voltas

teu regresso
é sempre despedida

prenúncio da partida
o começo do fim

cansei deste folhetim
fecho a última porta

tudo o que importa
é curar esta ferida

some de minha vida
não é muito o que te peço


"O sândalo perfuma o machado que o feriu"

sexta-feira, 9 de julho de 2010

São quase oito

Em meio a instrumentos, ferramentas individuais, músicas e supostas poesias me vejo aqui perdido.
Olho o meu irmão, vejo o nosso fazer e não encontro sentido em prosseguir.
Para onde levaremos essas individualidades escatológicas? Para qual lugar essa prática nos leva, o que nos transforma e o que nos trespassa?
Não sei.
Talvez eu suponha que seja a simples vontade de mostrar-se, a felicidade momentanea do "eu sei", a concubinação do eu pela imagem oca que a gente produz e pelo prazer falso do aplauso vazio e sem sentido do final.
É dificil optar pelo "não sei", pela descoberta e pelo coletivo.
E afinal de contas o que é o coletivo? Como eu comungo com o meu irmão?
Estamos tão perto e ao mesmo tempo dispersos, somos amplos mundos que não se influenciam, que não trocam e em nada se completam.
São quase oito e eu almejo o fim dessa angústia chamada ensaio.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Conversa de passarinhos.

Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro,
mas não um pássaro cantando: lembra um pássaro voando.”
Ferreira Gullar


Meu olhar procurou conforto na arvrinha onde mora um passarinho, mas ele não teve companhia.
Ah, Essa vida é um breve desconforto permanente.

Por que não amantes?
Por que não amores?

Meu olhar ficou voando com ares de pintassilgo e tristezas de sabiá.


quinta-feira, 1 de julho de 2010

Das observâncias

São duas as coisas que observamos à distância:
- as que tememos, como as feras selvagens;
- as que desejamos alcançar, como o horizonte.

set/2007

sábado, 19 de junho de 2010

Poema

Enfim, um poema limpo
sem vísceras
nem lágrimas
sem saliva
nem gozo
só o poema
sem poesia.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Entremeio

Modo de usar: lê em sussurros...
 
Victoria Abril e Antonio Banderas em "Ata-me!" de Pedro Almodovar.

Para R. H. S.


Queria encontrar o fio e desfazer a trama que todo dia se emaranha no meu coração. Refazer o novelo, desenrolar a novela sem mescla de drama. Vem. Ajuda-me neste enredo, tira de mim o medo de voltar pra tua cama. Desenlaça meus cabelos; qualquer bobice, exclama. Ata-me! neste ponto. Ensaia a cena, prepara o ato, enfrenta a chama. Lança as teias deste conto, escreve em mim o gosto de ser tua cortesã e tua dama. Vem. Aproxima o rosto, aperta os laços, dize que também me...

domingo, 6 de junho de 2010

Esse sentimento

"Ah, não acreditas em mim. Pois eu acredito na sua descrença e já penso em como parecer mais verdadeiro, em mostrar dados, fatos; esta aí: minha vida. Mostro-a com minhas duas pequenas mãos. Ainda não posso falar, porque toda essa correria me fez perder o fôlego.
Respira então criança.
Acredito nas pessoas e no poder de revelação delas, daí que surja sempre a desconfiança em mim. Estou sendo correto? - pergunto."
Mateus, O Antigo




Aprendi que não se diz "respira, criança" olhando nos olhos e pronunciando os fonemas de "respira, criança". Dizemos isso estendendo as mãos, tomando nos braços, beijando. É assim que se faz. Assim devemos fazer para que a criança confesse o vaso quebrado e não precise mais mentir, e perdoamos.

As crianças mentem o tempo todo e não é de maldade que o fazem. Eu minto às vezes e sei que você quase sempre duvida de mim. Digo que você deve mesmo duvidar, mas apesar da dúvida peço que confie em mim. Confie no amor que declarei assim: olhando nos olhos e pronunciando cada fonema de "eu te amo" - um "eu te amo" sufocado entre tantas outras palavras desnecessárias, erguidas como barreira entre a verdade enunciada e a realidade imediata.

Não acredite, porém, se sob a garoa fina eu pedir para que vá embora. Eu quero que fique. Eu quero você sempre perto e não sei por qual motivo. Não sei porque eu te amo e não acredite em nenhuma de minhas tentativas de explicação - eu não sei explicar e talvez não queira mesmo racionalizar esse sentimento. Não esteja tão certo de que quero ficar sozinha se por acaso eu voltar as costas - eu quero que impeça minha partida. Mas de tudo isso, e tantas outras coisas de que você pode duvidar, não duvide nunca de que eu te amo.

E se eu disser que não espero nada de você, duvide. Eu digo isso apenas para que você não se sinta constrangido; trata-se de uma resignação forjada - uma defesa contra esse peso tão pesado e disforme que é a esperança. Eu não espero nada de você, apenas que me surpreenda nesse meu querer. Não exijo nada de você, mas eu quero tanto...

Não sei se cabe ao amor dissipar a amargura que nasce na alma no infinito dos tempos, de um tempo que o homem nem ousa medir. Não sei se é preciso estar vazio para o amor se fazer pleno - isso é você quem diz. E se não fosse você a dizer, eu teria amado essas palavras? E se não fossem suas as palavras, eu te amaria tanto? Ninguém deveria se preparar para o amor, julgando que um dia estará pronto - porque amamos, plenos ou vazios, por tudo o que fazemos e dizemos. Eu te amo por tudo o que você faz e diz; te amo por tudo o que você quer fazer e dizer; te amo por tudo o que você não quer fazer ou dizer; por tudo o que silencia.

E também te amo pelo que eu mesma faço ou desfaço, digo ou apago, grito ou calo.

dez/2004

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Futuro Imperfeito

Antecipo o final:

Não de todo desperta, abrirei os olhos para o vulto ao pé da cama. Demoro a reconhecê-lo. Jamais o surpreendera assim, me observando. Talvez estivesse absorto entre ideias inóspitas; refletia, possivelmente, um futuro sem razão.

Voz doce, trêmula. Ar sóbrio em trajes negros. Luto pelo amor extinto.

- Não quero mais, Marcela.

- Tá bom...

sexta-feira, 28 de maio de 2010

maria, Maria


(Ilustração de Camila Paulino)


Ou isto ou aquilo. Hoje sou Maria, não mais maria. Porque maria era aquela que quanto mais se pedia, mais e mais chovia. Infindáveis versos de Drummond me fizeram encharcar a alma com toda sorte de águas. Deus bradou um dom. Hoje existe apenas Maria; a que olhava e sorria: "Bom dia!". Nunca pude ser a mais bela,  mas conheço bem a altura de minha janela e sorrio: "Bom dia!". Também não sou a mais sábia menina - que essa guarda em seus olhos toda a dor do mundo e eu não sofro tanto assim. Tudo o que faço (e já fazia) é sorrir: "Bom dia!".

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Meus amores vãos

Em memória de Ísis Rodrigues



Suponho que me entender
não é uma questão de inteligência
e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.
Clarice Lispector


Não é o gosto pelo trágico, meu amor. É a aversão pelo que é metade.

Eu não queria ter abandonado sua cama sem me despedir, há alguns anos. Eu não queria ter feito você adoecer, há alguns meses. Eu não queria ter batido a porta do seu carro, hoje à tarde.

Eu queria que todo aquele amor em cânticos, tivesse se feito carne ao menos por uma noite para eu me sentir mais viva. Eu queria que aquele desejo demoníaco, se satisfizesse todos os dias de nossas vidas para eu me sentir eterna. Eu queria que você me lançasse palavras duras, ásperas, que expressassem a medida exata do seu desprezo por mim; para eu saber o meu lugar, para eu sentir que você está vivo.

Eu queria que você tivesse me resgatado; segurado firme a minha mão e não me deixasse fugir nunca mais: porque eu já não sei viver sozinha.

Eu queria que você tivesse me assassinado - docemente - na última noite, me punisse por toda a minha vileza: porque eu já não sei morrer sozinha.

Eu queria que você me curasse ou me ferisse: porque eu já não sei amar sozinha.

Eu queria que você, o que ainda me ama, fosse capaz de me desejar. Você que às vezes me deseja, fosse capaz me alcançar. Você que sempre me alcança, fosse capaz me amar.

Eu queria que vocês tivessem corpo, nome e voz.

Não, não quero nada - abismo e silêncio, talvez - mas que seja por inteiro.


*


Perdão, minha pretinha, por dedicar em sua memória um textinho tão mal escrito, cheio de rasgos sentimentais, feito no calor da hora - caneta bic em papel manchado de lágrimas. Mas pra além do sorriso mais bonito do mundo que você tinha, eu lembro de você recitando e se emocionando com o "Poema em Linha Reta" do nosso Álvaro de Campos. Lembro das palavras da Clarice que me serviram de epígrafe e que foram as últimas que você usou em seu perfil. Penso na blusa vermelha d' "O Teatro Mágico" que você usava quando toquei suas mãos frias pela última vez e eu sei, eu sei que "sou tão perto de você". Te amo. Esteja bem. Luz!

domingo, 23 de maio de 2010

"Não era preciso que dissesses..."



Não era preciso que dissesses dos precipícios. Tenho caminhado em derredor deles e, vez ou outra, mergulho. Mergulho num salto largo rumo ao que minha vista sequer alcança: não aprendi ainda a decifrar teus olhos. Sei que são duros como a rocha onde firmo meus pés, sei que são áridos como os vales de adiante. Não poderei cultivá-los como faço em meus jardins. Os jardins são espaços de artifícios que servem às minhas tentativas de enredar toda sorte de passantes. Apresento-lhes as cores e as fontes, mas, sabíamos desde sempre, eles são cegos. Esmagam as pequeninas flores a pés desnudos e partem; deixarão nestas terras senão um tanto de si. Resistem os penhascos e as selvas, permanecemos nós.

sábado, 22 de maio de 2010

Reencontro II

§

Naquela noite redescobri como pude amar o menino. Lembrei-me. E lembrar, desta vez, não trouxe lágrimas. É certo que chorei. Mas um chorinho de alegria tão aérea, como jamais a tive. A nascente de alegria assim seja, talvez, o saber que nossos percursos não deformaram o que outrora nos fez unidos. 

Não, menino, não é ousadia supor seu percurso, seus caminhos. Sei que foram distintos dos meus pelo fato único de que em nenhum momento dessa jornada estivemos lado a lado. Minha visão talvez estivesse embaciada, porém confio em meus outros sentidos. Nesse tatear estradas nunca estive desatenta ou menos viva. Posso então dizer que foram distintos nossos percursos - estarei certa.

E nesses caminhos, tais quais navegantes ferindo mares intocados, tanta maravilha encontramos. Crescemos? Sim; mas não assim tão muito, pois somos ainda capazes de decalcar no mundo as cores da poesia. Reencontrando o seu, meu canto fez-se mais vívido. Reconhece em si a agudeza da vida, o pulsar destes algarismos todos, os infinitos signos. Reconhece sem decifrá-los.

Eu queria ter dito "vai-te embora, rapaz morto" e estaríamos já há mais tempo libertos - mas era o espinho de suas vidas outras que ainda feria meu seio e confundia-se com minhas já vividas angústias.

Éramos, menino, feitos de diversa matéria, porém éramos iguais em essência: o primeiro homem e a primeira mulher. O sopro que nos trouxe à vida foi o mesmo que espraiou o orvalho de minhas carnes fora de seu paraíso... Banida, estive vagando a lançar maldições e murmurar feitiços; busquei seus medos e brinquei com eles; eu era, então, sombras.

Mas hoje somos o pássaro e a menina; as primeiras coisas, dores e clamores, são passadas. Estão limpos os nossos olhos porque houve o intervalo da reinvenção. Eis que criamos nova mão e novo braço, verdadeiros cuidados a quem amamos. 

O braço acolhe, a mão entrega: a Deus. E hoje em meus braços você é uma oferta. Sei que são outros seus deuses, deusas e mitos; mas você bem sabe que já foi um dia meu único objeto de fé. Há, portanto, fração de seu sentido em mim - havia. Hoje faço o sacrifício último. Adeus, menino bonito.




Mundo maravilhoso, 
que guarda em algum lugar secreto 
o pássaro encantado que se ama…

Rubem Alves


§

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Reencontro



Para um instante e pergunta, olhos contra olhos:
- Cadê, hein?
Diante de minha expressão de dúvida, enfatiza:
- Cadê, hein? Cadê a marca do 666 no seu corpo?
Não sei o que responder. Percebo-me ainda mais nua; descoberta em meu segredo, pois sei que um demônio habita o meu coração.
Calo, atônita. O demônio sorri.
Novamente, só. Penso em como eu era. Penso nos meus atuais gestos de súcubo. Tenho a resposta tardia e desnecessária, pois ele bem sabe:
- Diga você. Foi você quem a inscreveu em mim, há exatos dois anos.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Ritornelo

A perplexidade diante das palavras não é privilégio das crianças e dos poetas. Também nós, pessoas comuns, nos surpreendemos distraídos a repetir uma sequência de fonemas, como fôssemos pregoeiros; religiosos. É o efeito encantatório das palavras que subtrai nossas vidas da banalidade, do usual. Nem sempre se trata de uma palavra por si bela, como "centopeia"... É tão gostoso repetir inúmeras vezes... centopeia... escandindo... centopeia. Inúmeras. Inúmeras. Acalma. Deixa mais leve o espírito. Repetir os sons à exaustão, reduzindo os semas, esvaziando o significado... ah, maria maria... tereza... repetir, reduzir, dessignificar... ah, maria... ah, tereza... joão raimundo joaquim joaquim joaquim escandindo joaquim joaquim joaquim joaquim joaquim joaquim o amor comeu metros e metros de gravata joaquim joaquim

segunda-feira, 15 de março de 2010

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Palavra


"Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido." - Alberto Caeiro


O que mais me apavora são os sons abstratos das palavras que eu não vejo, eu ouço, eu penso, eu construo por meio desse código o discurso, eu sinto todas as sensações. Eu juro que sinto. Me sinto, em muitos momentos, fantoche das palavras que eu sei que existem aqui dentro, mas quando pulam da minha boca ou da tua boca pra fora não são mais simples combinações de códigos ou palavras que a gente aprendeu, são sim a combinação de todas as outras palavras que ainda não sabemos e que nos fazem organismos vivos.


Minhas palavras são folhas mansas levadas pela rudeza dos ventos fortes que passam, são abstratas demais as minhas sensações, é quase impalpavel e imensurável o tamanho dos meus sentimentos. No entanto são tão fluídos, tão vertiginosos e tão invísiveis que precisavam ser concretos em folhas de papel, em livros de romance, em páginas policiais, em textos de teatro, em muros, em portas, em cimentos frescos em traseiras de caminhões em adesivos autocolantes em embalagens de shampoo em lousas verdes pretas e brancas em caixas de sapatos em outdoors em corpos nus.


Eu queria poder dizer o que eu sinto.


As palavras correm no ar, fragmentam-se nos ouvidos alheios, os sons do meu amor são captados por todos ouvidos que me cercam, mas os sons do meu amor servem de fato para ti uma pessoa no interlúdio da nota anterior e da seguinte.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Vem, ou a oração do amor carnavalizado.


Vem meu amor,

vem

que eu estou inteiro

intenso

pleno e de peito aberto.

Vem meu amor,

vem

nas faltas

nas inconstâncias

e inconsistências

vem na insegurança.

Vem meu amor

vem

me conhecer como eu realmente sou

vem me reconhecer.

Vem meu amor bandido

mesmo sem circunstâncias

sem caridade

vem pra girar minha cabeça

vem pelo sexo

pelo beijo

vem

por aquilo que pulsa

por aquilo que jorra

por aquilo que goza

vem

por aquilo que geme

vem meu amor

pela falta de sol

pelo excesso de chuva

pelo mormaço

vem...

...vem

...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Poeminha para Quarta-feira

para R.H.S.
Que tudo se desfaça em chamas; meu corpo em brasa...
Chamaste-me e meu fogo se fez no teu.
Que tudo se desfaça em chamas e restem somente cinzas;
Que tudo seja desfeito, mas só ao fim do carnaval.

 Álbum Nihilistes da banda Celeste.









quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Transitivo Indireto

(The Embrace, Schiele)

para R.H.S.


Gosto do teu cheiro e do teu gosto.
Do suor e do gozo.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Dessine-moi un mouton

Outro dia, desses dias em que chorei, o André me abraçou pra eu nunca mais querer partir e disse que eu era uma menina. Menininha de seis anos. Sorriu. Sorri; chorando ainda porque preciso crescer e não sei como isso acontece.
Eu imaginava que a gente crescia um pouco a cada amanhecer, então, já velhinhos, a gente passava a encolher e encolher até desaparecer pra sempre desse mundão de Deus. Acho que foi meu pai que me ensinou assim. Mas o sol vem muito freqüentemente por aqui e continuo a mesma tontinha de vinte e cinco anos atrás. O pai gosta de contar causos pançudos e eu tento acreditar, porque sei que cada história é um presente.

Meus olhos brincam com qualquer coisa, pequeninha, que eu ganhe. Seja a boneca que vi num anúncio de televisão (tão linda), o caramelo comprado na doceria do seu Sílvio ou a letrinha que me foi ensinada ontem. Eu me alegro muito facilmente ainda, percebe-se.

Só às vezes, e às vezes tem se repetido com frequência, sou triste. Triste, me transformo na boneca de louça que minha mãe sempre teimou em não quebrar. Ela fingia que sim, mãe brava, mas eu sei que os cuidados persistem. Desse jeito amor de mãe põe medo em criança que quer crescer, pois em muito lembra a dívida que todos nós temos com nossosenhorjesuscristinhoquemorreunacruzparanosredimirdospecados. Mãe, quando a gente-anjinho morre, vai pro céu? Se eu rezar bastante e tomar biotônico acordo bem crescida?

Faz um sol bem bonito - com montanha gaivota e mar - um sol que seja abraço infindo e eu sei que não vou mais querer fugir. 


(imagens do livro Le Petit Prince, de Antoine de Saint-Éxupéry)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Texto antigo com gosto de novo

§ 

Navegando os ventos de tua íris, aprendo melhor a imperfeição dos meus amores. Deixo o corpo um tanto solto, embalada pelo tropel de tuas ondas - tão azuis como o céu onde recolheste tuas mágoas. E todo ele, o meu corpo que já imagino teu, se faz também em vagas; projeto em mim o movimento das estampas que tens amado; pequeninas flores de toda cor. Esqueço-me por instantes que são tecidos leves os teus desejos; distintos, distantes dos retalhos que tenho reunido em minhas vestes arlequinais. Esquecendo um tanto as correntes que ancoram meus passos, posso amar-te. E há temores em meus braços quando lanço a impossível rede que trouxesse teu perfume até mim. Não quero hoje a dor dos espelhos; mirando as tempestades inscritas em minhas janelas, perco-me, como se fossem por mim o peso de tuas águas. Mergulho em tua pupila, menina dos olhos, evitando sentir na língua o sal de minhas tormentas.

§

Para Gabriela Camargo e seus amores,
aos meus amores.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Ao amante




§

Escondo minha face de seus olhos, porque a mim mesma não me posso ver em tantos espelhos. Ferem-me o peito essas imagens, entenda. 

Entenda que eu não busquei suas mãos; o contato se fez ao acaso, ou por algum motivo que somente se revelará quando vierem sobre nós as estrelas. As estrelas e a voracidade de suas luzes; verdadeiras luzes - luzes que roubam de nós todos os sentidos, deixando apenas a fome e o insaciável. Entenda. 

Entenda que eu não posso morar em seus braços, por mais hospitaleiros que possam parecer. Tenho já a minha casa e não foi sem lutas que levantei suas paredes; amo cada grão de areia que juntei para construí-la; amo o barro e o sangue com os quais temperei seu reboco; amo as frestas pelas quais observo os encantos de alheios jardins. Mas, entenda, que eu não posso tocar aquelas flores. 

E também não engane a si, se eu mesma sou capaz de ouvir seus pés à minha porta - você já está aqui dentro. Sinto que já está aqui dentro, mas eu, eu estarei sempre no detrás das velhas cortinas e não permitirei que seus olhos me alcancem, porque são viajantes. 

Tenho medo de seus olhos e não farei de meu corpo algum porto ou pouso; tudo o que sou são esses muros e essas velas apagadas.
 
Sei da fragilidade desta minha casa e antecipo a existência de tormentas, ou leve sopro, que a faça ruir. Neste dia terei de retomar a insegurança de meus caminhos, tortos. Serei novamente espírito peregrino em desconhecidos céus. Por isso, amante, peço que entenda. Entenda que, hoje, eu tenho pouco a oferecer, embora seus sinais sejam estrada para mim.
 
§

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Amar é pensar

"Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz."
("O Pastor Amoroso", II, Alberto Caeiro)


- Diga: o que vê quando olha dentro dos olhos dele?
- Eu vejo que são verdes.



"E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito."
("O Pastor Amoroso", VIII, Alberto Caeiro)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Textos de brisas, ventos e algas...



Nesta enseada a brisa tropical anuncia a chegada da chuva que cai levando cores, lavando nomes, aquificando sons. É neste colorido de sensações que seu nome me vêm à boca, escorre pelos dentes como um bulbucio lacrimoso e engasgante. Olho ao redor e estou sentado na beira do cais, deixo os pinguinhos caírem sobre o papel, ninguém está aqui. E a guerra tempestuosa de nuvens contra o oceano escurece o horizonte e eu, espectador solitário, envolvido numa brisa quente de lembranças ponho-me a contemplar maravilhado as teias relampejantes que trincam destinos e abrem caminhos .
* *
*
Nesse dia vejo o sol que sai fugídio pela tangente do meu campo de visão. Lá vai ele colorindo o horizonte de uma noite de esperanças, de corpos lívidos que se encontram e se separam numa dança de desencontros.
* *
*
Em cantos
me despeço
em adeuses tronxos
Dez entre cantos
eu me perco entre todos
que me rodeiam.